Eu gosto de crianças. Mas decepcionei um

Eu gosto de crianças. Mas decepcionei um. Foi um erro incorrigível. Aconteceu há quatro anos, quando ele, Plínio, contava com apenas seis anos. Era meu vizinho de condomínio. Seu apartamento era justamente sobre o meu. E era difícil um dia em que não nos encontrávamos (pelo menos, uma vez ao dia).

Sempre vi em seus olhos negros um interesse pela vida, a descoberta do mundo e os mistérios que a cercam. Há nele um potencial para os estudos e as artes. Honestamente, vejo nele muito de mim.

Toda vez que nos encontrávamos ele lançava alguma pergunta (as vezes capciosa) como, de certa vez, mandou-me a tal: “Tia, o que as múmias comem?”. Gozado era a face de sua mãe – ela que o havia trazido do cinema após assistirem a um filme justamente sobre o Egito – e que me suplicava por socorro. Não titubeei e devolvi “Es-ca-ra-ve-lho”. Ele gostou e riu. Sua mãe gostou e suspirou aliviada. Soube que naquele mesmo dia, o pai resolveu dar uma explicação massante sobre todo o processo de mumificação. Aquela mesma explicação que os alunos do Ensino Médio recebem sem ânimo. Coitado de Plínio. Seu pai se esqueceu que ele tinha apenas seis anos!

Talvez você não saiba, mas fui professora. Embora carregue experiências didáticas com adolescentes, minha predileção é com crianças. Contemplo suas carinhas curiosas, que se divertem a qualquer nova descoberta. Para mim, ensinar algo é simplesmente despertar o interesse em alguém. E por isso se deve ir de encontro ao outro, a sua visão do mundo e linguagem. Se me permite, modestamente, sempre consegui alcançar tal propósito com êxito.

E foi nesse modelo de “ensino” que Plínio trazia algo novo todo dia. De múmias às baleias, passando por super-heróis e pilotos de Hot Wheels que, em uma certa tarde, convidou-me a jogar bola com ele (nunca dispenso uma oportunidade de brincar com os pequenos). Chutava em minha direção e eu devolvia. Até que – como toda criança – começou a exagerar e jogar mais longe a bola, de modo que me exigia correr para pegar.

Em um desses momentos falei para ele “que não tinha o poder do Homem Elástico, para me esticar assim…”. Para quê que falei aquilo. Ele parou a bola com o pé, e o deixou descansando sobre ela. Olhou-me sério e disse “Mas você não é um super-herói, tipo a Mulher Maravilha?”. Só respondi “Quem me dera se eu fosse…”. Plínio suspirou com decepção e me soltou essa “Tia, quer dizer então que você é uma mulher comum?”. Só me sobrou um “Infelizmente”.

A mãe que estava envolvida em outro diálogo com uma vizinha ouviu o que ele falou e o repreendeu assustada “Menino, como você fala uma coisa dessas?”. Tive que a interromper e esclarecer que ele não havia feito nada demais, e que ela não tinha acompanhado nossa conversa.

Passado esse instante, Plínio ainda decepcionado me perguntou se não havia um super-herói no condomínio. Diante daquele “climão” pensei rápido e disse “Tem sim. É você. Cabe a você proteger todo mundo”. A sua tristeza diminuiu e continuamos investindo ainda naqueles chutes por mais uma hora. Depois sua mãe o chamou para subir enquanto resolvi verificar se havia chegado alguma correspondência. A noite senti-me cansada. Não sei e nem imagino como Plínio possa ter dormido. Fato é que no dia seguinte ele, cheio de energia, me trazia novamente uma nova pergunta “Tia, quanto ganha um piloto do Hot Wheels?”

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