Insone torneira oitavada

Sim, eu tenho insônia. Desde quando? Não sei, nunca parei para pensar nisso, mas pensando bem… Devo falar sobre ela com profundo respeito. A nossa relação é antiga e afetuosa e me sinto a vontade (agora) de falar (ou seria tocar?) a nossa intimidade.

Ela me tira o sono e me recompensa com os segredos. Tenho muitos. Moro em um prédio e sei mais dos vizinhos do que de mim própria e devo logo me defender das mentes ansiosas – eu não sou fofoqueira! Apenas ouço as pessoas em seu íntimo e entendo porque não gosto de me relacionar com elas em plena luz do dia… Elas sucumbem e se deixam esfarelar… Como pode isso?

Preciso que permaneçam intactas e assim aumento o meu silêncio. Lembro-me dos gatos em sua suavidade sensual ao caminhar… Imito-os de modo suplicante e os meus passos, em cada cômodo, se fazem fortemente vacilantes “posso acordar alguém”.

E o que acontece? Um pernilongo dolorosamente acaba de me morder. Preciso matá-lo, preciso continuar o meu sangue e eu bato. Agora ele está na minha mão e nela fica pequeno. É menor sim! Mas o som do estalido foi grande, percebido e eu percebi… Quem mais?

Nisso sinto que alguém foi ao banheiro. Ouvi a porta reclamando (abriu ou se fechou?), escandalosamente convocou a descarga e agora aciona a torneira da pia que é soprano. Ela alcança a oitava e eu… Eu? Vacilo na primeira!

Mas a dona da torneira (ou do apartamento) é sempre cansada e sinto nos seus passos. Sinto que ela sofre de enxaqueca, mas para os outros vizinhos ela diz que sofre de sinusite, pois a sinusite pede piedade que a apática enxaqueca não soube alcançar. A torneira oitavada dá a dica, mas o seu agudo não é ouvido. Há outra dimensão sonora que se esvai superiormente por aí.

Com ela não posso mais insistir e devo deixá-la para a próxima noite. Ela tem uma rotina noturna e eu tenho uma noturna rotina.

Olho à janela e o que vejo? Um gato vagabundamente visitando a garagem. Ele não me vê, mas me sente. Conhece-me das horas que durmo. Sabe mais de mim como sei da vizinha e sua torneira oitavada… Mas e quanto ao gato, quem dele sabe? É ainda um segredo que não desvelei…

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