Ironias da vida

Toda vez que me deparo com as chamadas “ironias da vida” sinto-me receosa. É uma reação natural a tudo que é maior e mais forte, como, por exemplo, os fenômenos da natureza. O exemplo master é a própria vida, maior e mais forte, abarcadora de tudo e todos.

E foi em meio as amenidades próprias que o ambiente pós-almoço proporciona, que ouvi uma das histórias mais improváveis e funestas que me lembrei nesta semana; após ouvir outra, de outra pessoa, tão mais nefasta e impressionante que poderia imaginar com minha sedenta mente ficcional.

É comum aos trabalhadores, de qualquer área, labutarem com temor, principalmente o de perderem os seus empregos; este visto como o maior orgulho do dito cidadão, o dignificador da vida humana, a elevação humana. O aprimoramento de seu caráter por meio do trabalho dá muito trabalho.

Em uma fábrica de cimentos, localizada na região norte do estado do Rio de Janeiro (no interior mesmo), circulava um boato pelos corredores que um tal diretor de São Paulo estava prestes a realizar uma visita à unidade. Não seria uma visita técnica, mas sim de cortes para “enxugar a receita”. O clima que pairava em todo o ar era “numérico” porque de um dia para o outro a expectativa de corte aumentava. Primeiro falou-se em cinquenta, no dia seguinte estimou-se que a cifra chegaria a cem. Entretanto, a possibilidade da lista alcançar quinhentos não era impossível, já que a tal da redução iria gerar uma economia de aproximadamente trinta por cento sobre a folha de pagamentos. Por outro lado, aquele mais frágil (exatamente dos funcionários) sentiu mudança, uma nova rotina: uns não conseguiam trabalhar direito, enquanto outros não dormiam, haviam também aqueles que compravam jornal sedentos por uma boa oportunidade de salvaguarda nos classificados. Há quem tenha estipulado um plano B e/ou C, caso fosse o infeliz que tivesse o seu nome inserido na tal navalha (vulgo lista). E algumas bocas pequenas (nem tanto) comentaram ter visto alguns frequentando o terreiro de Mãe Moça para se segurarem…

Fato é que o tal diretor foi à fábrica e cumpriu à risca todo o protocolo da nefasta visita. Diziam que o tal homem não era de conversa. Por onde andava deixava como rastro uma energia pesada. Pior era para Agenor, o motorista, que soube através do cunhado Roberto, que trabalhava no administrativo, que seu nome estava na tal lista. Agenor (coitado!) tinha que carregar o carrasco do diretor para todos os lugares. Embora dirigisse quieto, teu peito arfava revolta. Se ouvisse a voz do dito homem sentia um misto de calafrio e birra. Compreensível.

Aquilo – que poderia ser chamado de tortura – durou uma semana. Por mais incômodo que a presença do diretor gerava sabia-se que quando ele partisse rumo a São Paulo levaria para a sede da empresa a lista com os nomes de todos os infortunados. Agenor já nem sabia mais o que sentir…

Se, por um lado, o tal diretor demorasse voltar para São Paulo postergaria assim a demissão, já que se ganharia tempo (e dias trabalhados que entrariam nas contas da rescisão); mas, por outro, quanto mais tempo ele permanecesse na fábrica mais observaria e poderia acrescentar nomes à intragável lista. Entre um ponto e outro, algumas vozes sorrateiras ecoaram “que bom seria que o avião com o diretor caísse…”. É bem provável que o desejo tenha sido maior entre aqueles que só pensaram na tal possibilidade… Agenor, se pensou, nunca confirmou.

Fato é que, quando chegou o dia do diretor ir embora sobrou para o Agenor levá-lo ao aeroporto. Se todos que ficaram na fábrica estavam apreensivos, imagine o que deve ter se passado com o pobre motorista que precisava cumprir a sua obrigação: levar o seu algoz até o destino final? Agenor “fez o seu trabalho” como sempre, mesmo sabendo agora que poderia ser a última vez.

Assim que o diretor adentrou a recepção do aeroporto para fazer o check-in, Agenor ligou o carro para voltar a fábrica. Antes de dar a partida decidiu olhar a pista em que o avião já esperava o embarque dos passageiros. Acabou se distraindo ao ponto de dar tempo, e ver o miserável do diretor subir as escadas da aeronave. Agenor sabia que, de algum modo, essa seria a última vez que veria aquele maldito homem. Agora que podia esbravejar decidiu dirigir calmamente. Afinal por que tanta pressa?

Assim que regressou a fábrica, não demorou muito para chegar a notícia mais improvável: o avião com o tal diretor (e a lista) caíram. Não houveram sobreviventes. Entre a surpresa e o alívio provocados, o desfecho macabro salvou a demissão de centenas daquelas almas trabalhadoras.

Por mais inusitado, a pergunta que fica no ar é: Tal desfecho seria uma ironia, destino ou mesmo castigo? Difícil responder. Nem quem me contou se arriscaria. Mesmo que tenha sido uma testemunha ocular do fato que ocorreu há mais de trinta anos. Por agora notei em sua face a surpresa, ainda que já tenha contado tal história diversas vezes… Pois bem, diante de tal relato sobrou-me tomar um gole de cerveja e observar rapidamente o céu límpido, que era cortado por um rastro de um jato que se fazia perder em toda aquela imensidão azulada.

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