Ontem à tarde, resolvi me presentear ouvindo Chopin. É importante que saibamos ser gentis com a gente mesmo, e meu cachorro – o cúmplice dos cúmplices – deitou-se bem perto de mim para ouvir as sinfonias. Sou gentil com ele e recomendo que todos sejam com os animais. É bom para quem deseja afeto…
Meu cachorro estava peludamente encostado a minha perna e bem enroladinho em uma circunferência que mais se assemelhava ao ouroboros alquímico. Ele não comia a sua própria cauda, mas repousava sua cabeça sobre ela, de modo que percebi toda uma suavidade – ele percebeu a amenidade vespertina.
A cada nota precisamente executada eu ali, no chão fresco, sentada, divagava sobre o talento de Chopin. Assim como meu cachorro e eu alimentávamos a cumplicidade, o músico e o piano não eram diferentes. Se bem que, as sutilezas de seus ossos humanos com aqueles outros de marfim (que compõem as teclas) são tão suaves que logo penso que se trata somente de um único ser.
A cada dedilhado executado sinto que os seus dedos nada mais fazem do que caminhar no meu coração. É um sobe e desce, esquerda e direita que me provoca cócegas, ao passo que nesse compasso as lágrimas silenciosamente mareiam os meus olhos.
Mantenho-me em silêncio, pois não quero que o meu cachorro acorde e ache que estou triste – esqueci-me de dizer que ele tem o costume de lamber lágrimas – quero apenas deixar que Chopin conduza-me sabe-se lá para onde!
Meu cachorro adormeceu e o fiquei observando, pois é engraçado o seu jeito de dormir que muito lembra um ursinho. Ele logo estava a sonhar… Seus olhos piscavam e as patas se mexiam. Ele havia chegado ao local em que Chopin agora vinha para me buscar.
A tarde se esvaneceu e eu quase dormi, porém houve uma interceptação. Um vizinho resolveu ligar o aspirador de pó de seu carro. Meu cão acordou assustado, sentou-se e ficou colado ao meu lado. Até aí tudo bem, mas não… Ele ligou o seu autorradio para ouvir aquilo que insistem em dizer que é música sertaneja. Por Santa Cecília, há muito que a música sertaneja abandonou o sertão, e ao se mudar para a cidade grande, desprovida de malícia, por lá mesmo se perdeu!
Tocava um “sucesso do momento” gritado por uma dupla feminina que julgo serem descendentes diretas das pacientes histéricas de Freud. Quanto desatino sonoro!
Meu cachorro pediu proteção e pulou no meu colo, colou sua cabeça ao meu peito e senti a sua aflição. Continuava a tremer. Meu ouvido, pobre ouvido, também começava a se manifestar! O que fazer?
Por mais que se fechem todas as portas e janelas, esses ruídos conseguem penetrar o meu apartamento. Que inferno! Não vou rezar e nem rogar praga, pois temo os efeitos, ainda mais que Escorpião transitava em alguma casa hoje do meu signo.
O jeito era tentar acalmar o meu cachorro. E eu? Eu vejo como me recupero depois. Agora os nervos estão à flor da pele!
Prometi ao meu cachorro que aquilo passaria e lembrei-me de uma das muitas frases do meu avô “Calma, nessa vida não há mal que sempre dure e nem bem que se não acabe”…
Para o nosso bem, aguentamos aquele mal por mais meia hora. Depois tudo se fez silêncio. (…) Ah, o silêncio… A mais sublime das canções!
Sentei-me ao chão já que muitas das vezes me permito informalidades, e fiquei observando a bela tarde ensolarada que amenizava até os corações mais improváveis.
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