Acabei de ver um homem morto. Seu corpo estava em uma curva e seu sangue demarcava algum trajeto. Haviam policiais em volta e uma lona preta cobria o seu corpo que, aos poucos, esfriava no chão do asfalto.
A princípio pensei que poderia ter sido um atropelamento de um pobre cão, já que um carro e 3 motos da polícia criavam um círculo, e bem sei que eles gostam de cães… Meu coração deu um sobressalto.
Reduzi a marcha do meu carro enquanto buscava um pouco de ar, porque precisava passar ao lado. Não era um pobre cão, era uma pobre vida ceifada. Só ouvi da pessoa que mais amo ao meu lado que “não é um cachorro, é uma pessoa. Veja, morreu há pouco. Sinta o cheiro forte de sangue no chão”. Sua voz ao meu lado, no carona, não era mais apenas a sua doce voz, era uma voz diferente, semelhante à da intuição que fala com a gente de forma leve e marcante…
Não pude sentir o cheiro do sangue, pois que sentia o calafrio tomar conta do meu corpo. Firmei mais ainda minhas mãos ao volante, era preciso manter o controle da direção, mas minha cabeça tonteava.
Minha doce amada, sempre ao meu lado, seja como carona ou dirigindo conhecia o lado duro da vida. Estagiou durante bom tempo de sua faculdade de Direito no IML. Conhecia os fundamentos da necropsia. Embora lançasse um olhar técnico na rápida passagem sobre o local ainda mantinha os seus sentimentos. Não endureceu como muitos na profissão.
E quanto a mim? Além de filósofa e escritora, também sou jornalista. E durante meus tempos corridos de redação cobria muita “notícia ruim”. Frequentava assiduamente delegacia, batalhão de polícia. Tirando algum delegado soberbo, cuja característica podia ser medida pelo tamanho e disposição de sua gravata, muitas das vezes tortas, os policiais sempre foram receptivos. Mas eu nunca tinha me deparado com situação como esta de agora…
Deixei-a no trabalho e precisava voltar para começar o meu dia, a minha labuta diária frente ao computador. Nunca fiz um pequeno trajeto tão devagar. Precisava manter o controle, para enfrentar novamente aquela imagem.
Por mais que não atue no jornalismo há alguns anos precisava parar e conversar com algum policial. Logo vi que um jornalista estava presente iniciando a sua tarefa difícil, a primeira do dia…
O cheiro da morte era nauseante. Não olhei para o corpo, embora se mantivesse tampado com a lona queria evitar qualquer outra imagem difícil que me impressionasse mais do que já estava.
Perguntei ao primeiro policial que encontrei se aquele crime poderia ser um “acerto de contas” típico do tráfego de drogas ou se havia algum outro perigo que precisasse ficar mais atenta, pois eu precisaria passar novamente pelo local no final da tarde.
Ele mecanicamente me respondeu que o que tinham verificado era que aquela morte havia ocorrido no início da manhã, e devido a localidade poderia ser sim um acerto de contas. Quando indaguei sobre a minha preocupação em ter que passar novamente no local, ele me disse que poderia ficar tranquila que ninguém atiraria em mim.
Instintivamente disse que esperava que não, mas que tinha outra preocupação relacionada aos embates terríveis que presenciamos ao longo das últimas semanas, devido as eleições presidenciais.
Ele retomou mecanicamente a fala ponderando que “90% das mortes ocorridas na cidade eram motivadas pelo tráfego de drogas”.
Era difícil me manter por mais alguns segundos naquele local. Agradeci e desejei-lhe um bom dia de trabalho. Voltei para o meu carro, mas antes pude ouvir — para a sorte ou azar de minha surdez — um outro policial falar, entre eles, “será que ele (a vítima) votou no 17?”.
Parti com aquela ambígua declaração em minha mente. A vida se faz e desfaz em meio a tanta indiferença. A vítima poderia ser um bandido ou não, isso não faz diferença para a “foice ceifadora”. É uma vida que se vai, mais uma que se cala. Mais uma história que se perde.
Sigo. Segunda, terceira, quarta marcha até. Para uns “é a vida que segue”, para mim não. Estou impressionada. É difícil, por ora necessário. Não perdi minha humanidade.
Deixe um comentário