A rotina e o hábito estabelecem o modo de vida, a horizontalidade da sobrevivência. Existir é uma terceira palavra, que pede um terceiro conceito. Todos seguem uma rotina. Todos são horizontais. Verticalizar é quebrar a rotina para estabelecer outra. Exige-se disposição e energia. Poucos se arriscam.
Mari nunca ouviu nada disso em seus mais de quarenta anos, mas segue naturalmente. Desdobrar-se para ela – em termos de disposição e necessidade – é dar conta das faxinas nas casas dos patrões e também na sua. É um fardo. Castigo para quem odiava estudar e só queria namorar na adolescência.
Da última vez que a encontrei já contabilizava três filhos pequenos e vinte quilos a mais. Nada lembra aquela Mari que, no passado, orgulhava-se do corpo escultural. Tanto que humilhava quem não fosse semelhante.
Casada há quinze anos com o mesmo homem, o qual sonhava em ser jogador de futebol, mas uma lesão no joelho o fez encarar a dura realidade e se contentar com qualquer oportunidade que viesse. Ele é porteiro. Entre apertar botões, atender interfones e vigiar as câmeras de segurança, assiste televisão e mexe no celular (quando não há nenhum morador por perto). Ele também desconsiderava os estudos.
E outro detalhe: a vida de ambos é consumida pelo trabalho e pouco sobra para o lazer. É fato que o dinheiro dita o ritmo: esforça-se mais e ganha-se menos. Todos os dias, todos os anos.
Quanto a Mari, ela faxina o dia todo, mas é a tarde que se alegra. Há muito encontrou, digamos, uma alegria vespertina. Com maestria limpa uma coisa daqui, organiza outra dali e acompanha atentamente, pelo próprio celular (diretamente no Wi-Fi da patroa), os programas de fofocas. Sabe tudo sobre a vida das celebridades, e chega a conversar com o aparelho como fazem somente exímios comentaristas.
É tudo fútil, ela sabe, como compreende que nada mais é do que entretenimento. Mas a vida, a sua vida precisa disso. Sim, de algum modo ela está convencida. Acompanha todos os realities para entender como funciona o jogo das relações, ao mesmo passo que busca se inspirar nas estratégias – ela não sabe que é roteiro – para se sair melhor nas próximas discussões, principalmente com a vizinha, a qual considera uma invejosa.
De vez em quando, Mari leva alguma de suas filhas para ajudar na faxina. Isso não quer dizer que queira o mesmo futuro para elas, mas sim que é uma oportunidade de trabalhar menos, mandar mais, ser um pouco a patroa que adormece em seu íntimo.
A sensação é tão boa que se distrai facilmente e, por ora, alguns acidentes acontecem como, por exemplo, uma taça quebrada, um arranhão no espelho e até mesmo uma toalha manchada com molho (e até respingos de água sanitária, pode?). É o risco que se corre quando se coloca criança para fazer algo sem supervisão. Todavia, por mais embaraçosa que seja a situação, Mari sempre apresenta alguma solução: perfuma mais as roupas, deixa o chão mais brilhante e aromatiza toda a casa com sua receita mágica caseira, cujo segredo guarda, como quem vela os mais profundos sentimentos. Sempre diz que “as patroas gostam de brilho, cheiro e coisas nos lugares”. Mari sabe das coisas e as patroas logo relevam. É assim que se mantém “o serviço”.
Trabalhar é um fardo, pesado. E, de vez em quando se pergunta se existe algum “serviço bom”. Acredita com todas as suas forças que não, pois bom mesmo é não precisar trabalhar. Por isso ela sonha em se tornar rica. Sabe que com faxina isso é impossível. O meio possível é ganhar na loteria. E ela aposta, aposta toda semana. Mantém-se confiante, desde que a cartomante lhe mostrou a carta da fortuna, e a missionária – que sonha em virar pastora – profetizou que sua vida, sua família e sua casa “será inundada de bençãos e vitórias porque o Senhor a ordenou em lhe dar a boa nova”.
Desde esse dia, Mari sonha e faz planos para o futuro. Pegou até uma faxina extra para investir o dinheiro nas apostas, cujos números recebe pelo grupo de WhatsApp, um que é exclusivo dos seguidores dos “Milionários das Loterias” ou qualquer outro nome, idealizado por um desconhecido, que ninguém sabe ao certo se algum dia, somente um dia, ganhou algum prêmio. Ela não pensa nisso, dedica suas forças e atenção aos números da sorte. Só isso. Acertar os números, pôr a mão no prêmio e materializar todos os seus sonhos. Viver na abundância. É isso.
Todos os dias quando começa a faxinar olha para toda aquela bagunça e sujeira e diz para si mesma “que um dia vai acabar”. Deixará de ser faxineira para se tornar patroa. Com quantas outras já não aconteceu isso? Muitas. Quais? Não sabe. Mas que há, há sim.
Tomada por uma forte certeza ela definiu que, assim que ganhar, fará todos os procedimentos estéticos existentes para recuperar a juventude, a magreza e a beleza. Por isso não se preocupa em enfear um pouco mais. É por pouco tempo. O mesmo vale para as suas roupas, sua bicicleta velha e enferrujada e a casa em área de risco com goteiras no meio da sala. Tudo será trocado por roupas de grife, carro do ano, casa grande, viagens, muitas viagens, principalmente para o exterior. A primeira será para os Estados Unidos, para provar que todo pobre emergente emerge por lá (ou para lá).
Não sabe quando esse dia chegará. Mari faz a sua parte: aposta. Decidiu que aprenderá técnicas de sonho lúcido no Youtube, assim como a criar tabelas da sorte e fará simpatias. Nada de investir em bolão, pois quer ganhar sozinha, ter tudo somente para si. Tantos novos milionários ganham assim, sozinhos, com uma única aposta simples. Simples assim. Para ela é só uma questão de sorte e tempo. E o tempo passa.
Por agora, o programa de fofocas, a invasão às vidas das celebridades, subs e sobs. Quem sabe quando Mari ficar rica também poderá se tornar uma? A vida é feita de possibilidades e oportunidades. O mundo gira. A roda da fortuna gira.
As roupas que giravam na máquina pararam. Mari pega cada peça com impaciência. Sente desconforto ao dobrar-se para retirar as roupas misturadas do fundo, cada vez mais fundo. Ela espreme a sua pochete. Ela sente ardor. Ela ouve o seu comentarista favorito que diz que “a vida consiste em casar, ter filhos, trabalhar e arrumar a casa”. Não, Mari não gostou. Bate a camisa do patrão no ar com força e xinga o comentarista. Revolta-se, pois quem diz isso é porque quer humilhar o pobre, e esse dito comentarista chinfrim fala isso porque está com a vida ganha, é famoso, trabalha na televisão e é rico. Pronto!
Mari está pobre, por enquanto. Algum dia, um dia qualquer isso mudará. Cabe ao tempo olhar para ela e decidir. Dar-lhe a causa ganha, ou melhor, premiar o bilhete da loteria. Fato!
Mari, pobre e irritada. Agora, mais do que nunca, precisa acertar as dezenas. Na Mega são necessárias seis; na Quina, cinco. Acredita que a primeira é mais fácil, entende que existe um padrão, embora não sabe (e menos ainda acerte), pois com muito esforço e fé o máximo que alcançou foram três belas dezenas. Faz da obstinação a sua missão de vida, uma vida de abundância, a fortuna do tarô, o recado do Senhor. A promessa da predestinação.
“É hoje”, pensa ela. É um sinal divino. Ainda há serviço por fazer. Ela precisa faxinar o banheiro, mas se o fizer não dará tempo de chegar à Lotérica. “A vida consiste em casar, ter filhos, trabalhar e arrumar a casa”, reverbera em sua cabeça. “Jamais”, ela responde mentalmente. Agora lhe surge uma ideia: limpar “por cima” o banheiro e esconder o sabão em pó e o cloro, para caso a patroa reclame. Qualquer coisa dirá que faltou material para a limpeza completa. E ela assim o faz.
Desliga e fecha tudo da casa. Coloca o celular entre os seios e sai pedalando com pressa. O seu destino lhe espera. Ela acelera. Lembra de uma técnica do Youtube e recita “Eu permito, eu aceito, eu recebo, eu agradeço”. Amanhã será o sorteio. Hoje ainda é sexta-feira.
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