O coração do futebol brasileiro está na várzea. Em qualquer campinho, improvisado ou emprestado, a molecada ou os homens feitos vivem as suas glórias. Todos são craques, ainda que o chute falhe porque genialidade demais atrapalha; e, pensando bem, um pouco de humor é necessário para gingar qualquer jogada.
O futebol de várzea é tão simples que começa discretamente por meio de um combinado entre os poucos interessados. Juntam-se alguns pares na esperança de atrair almas competitivas assim que a bola começa a rolar. E conseguem. Parece mediúnico.
Ninguém fala, mas é sabido que a várzea concede a malandragem, graças à irregularidade do terreno. Quem ali domina a bola, domina em qualquer lugar, seja na areia (com ou sem pedregulhos), lama, buraco e até restinga. O futebol de várzea é, por assim dizer, o descompromisso mais compromissado. Gradualmente, com fluidez, tudo se estabelece. Primeiro, as partidas; depois, as equipes; e, por fim, a torcida.
Tenho certa predileção por aquele futebol que rola nas manhãs de domingo. Daqueles que precedem o churrasco do almoço, o bingo da associação beneficente ou a missa celebrativa em homenagem ao santo da paróquia.
Jogadores em forma ou não, os craques são os tipos mais comuns encontráveis durante a semana: o eletricista, o estudante, o dono do açougue e até mesmo o funcionário da prefeitura. Alguns deles tendem a se destacar ora pela cavadinha, pelo chute forte ou aquela canhotinha certeira.
Há sempre espaço para o inusitado. Se o futebol em si é paixão, o da várzea é ardente, e em todos os sentidos. Literalmente. Já presenciei time levar gol porque o goleiro se distraiu com uma torcedora em uma intensa troca de olhares e poses. Só despertou quando sentiu aquele vento da bola passando no canto e pousando no fundo da rede, bem no ângulo. Comemoração de um lado, protesto de outro, riso da torcedora e meu também por cumplicidade típica de observadora nata.
Não pense que parou por aí. Houve uma chance de empate, num verdadeiro contra-ataque, que não se concretizou porque o meia de campo, de posse da bola, quis impressionar outra torcedora e na hora de chutar sabe-se lá como acertou o chão. A bola sumiu em meio a cortina de poeira. Por pouco zoações e risos não foram abafados por intensos espirros e acessos de tosse.
É aquilo, toda partida consiste em reunir craques e perebas. Um necessita do outro para existir e se reconhecer, proporcionado por toda a singularidade exata da várzea. Ah, o futebol simplório… O dos campinhos é tão singelo que não poderia ser chamado por outro nome. É tão maroto que não carece de linhas demarcatórias, já que todos têm em mente o traçado exato.
Esse mesmo futebol simplório chutado no Brasil dos brasis, em cada manhã de domingo, em cada fim de tarde de dias qualquer é o sonho vívido jogado, driblado por peladeiros envoltos em suor e poeira. Semelhante aos antigos gladiadores, muitas vezes com peitorais arfantes permanecem pelados em essência porque transpiram o futebol. O futebol pueril. O faceiro futebol brasileiro.
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