A impressão que fica não se compartilha

Menti. Menti para a minha mãe, para a minha tia e também para a minha prima. Menti para todo mundo. Disse que o ônibus sairia às 20 horas, para pensarem que esperaria por duas horas; mas, na verdade, o horário exato é 22 horas. Uma espera dobrada. Se eu falasse a verdade ficariam preocupadas, questionariam o horário e trajeto, a minha escolha. Por isso menti, por preservação.

Agora sinto fome. Com algum esforço e muitas pernadas encontrei um local calmo para comer. “É um restaurante durante o dia, que serve lanche a noite”, me disse uma mulher que acabara de fechar o salão de beleza. Cansada e simpática. Enfim, o fim do seu expediente.

A lanchonete noturna é ampla. E também gasta. Precisa renovar a pintura, o mobiliário e até o pôster envelhecido do Flamengo. Carece disso. Por outro lado, há poucas mesas ocupadas, as quais estão atentas ao futebol na TV. É o jogo do Vasco contra o Bragantino. É mais uma rodada do Brasileirão.

As poucas mesas são, na verdade, três (não me incluo): a primeira, com três amigos torcedores; a segunda, próxima a eles, duas mulheres—logo percebo ser um casal —; e, a terceira, bem a minha frente, um jovem casal hétero.

Pedi X-Salada e suco de laranja. E aguardo com a mesma serenidade da Monja Coen. Aproveito para observar os personagens, mas logo faço com discrição, pois exatamente na mesa das mulheres, uma delas me nota. Encara-me com algum interesse.

A blusa azul escura e o forte batom vermelho acentuavam a sua pele branca, enquanto os olhos redondinhos, um pouco miúdos eram ávidos. Os cabelos curtos, negros, cacheados harmonizavam com o redondo do rosto. Não era bonita. E fazia lembrar alguém (quem?).

Ocasionalmente, se virava para mim com olhar penetrante. Como ela estava no meio, ou seja, entre a namorada dela e eu, a outra poderia facilmente notar. Por mim desejava apenas três coisas: paz, meu lanche e a retomada de minha viagem. Rosaline e os cachorros me aguardavam. Sentia-me cansada, com fome e saudosa.

O Vasco marcou um gol. Houve uma satisfação nas mesas. Acabei compartilhando do mesmo sentimento, pois era o time de coração do meu pai.

Na mesa do casal hétero, o rapaz conferia as suas apostas pelo celular (aquela coisa de bets). Já as outras mesas, comentários eram trocados a cada lance importante. Várias foram as oportunidades mal aproveitadas pelo Bragantino que ameaçava a todo instante.

Meu lanche chegou no momento mais perigoso da partida. Se não fosse o chutão dado pelo zagueiro do Vasco, o time paulista teria empatado. Foi aí, que a que me encarava soltou alto “Tira mesmo. Não deixa esse time feio marcar”. Logo desconfiei que ela poderia ser do Rio, pois não era a primeira vez que ouvia aquele “time feio”. Rosaline, por vezes, solta uma dessas. E ela é norte-fluminense.

Quando o jogo esquenta cabe as cervejas aliviarem as gargantas, isso traz esperança a qualquer dono de bar, mesmo que saiba que o lucro é pequeno. Esperança é esperança. Sem preço e tamanho.

O Vasco marcou o segundo gol. Nova satisfação nas mesas com goles generosos. O placar era confortável 2 × 0 para os cariocas, o que garantiria uma ou duas posições vantajosas no meio da tabela, e o esquecimento da zona de rebaixamento, que assombrara o clube semanas passadas.

E novamente ela me olhou. Já a outra, animada, disse para a mesa dos três torcedores, que ela, exatamente ela, “estava dando sorte ao Vasco”. Em seguida, acabou me descobrindo. Olhou-me. Fiquei apreensiva, por sorte não passou disso. A cerveja com o seu dom etílico a anestesiou.

Estava prestes a terminar meu lanche e ainda tinha um pouco mais de uma hora para ser usada com calma. Mas não abusaria. Estava curiosa em descobrir com quem ela parecia. É engraçado quando acontece isso. A impressão é a pessoa ser familiar. Não. É apenas um truque da mente.

Tranquilamente paguei minha conta e fui ao banheiro. Quando saí elas não estavam mais a mesa. Fiquei frustrada. Ser observada faz bem a alma. Sem mais, restava-me seguir devagar até a rodoviária. Na saída do bar/lanchonete vi as duas atravessarem a rua. A de blusa azul, antes de entrar no carro, me encarou novamente, pela última vez.

Jamais saberei qual foi a impressão que lhe passei. Segui o caminho até a rodoviária atenta a brisa agradável noturna, a qual recaia sobre as ruas mornas. Segui pensando nisso… Quando estava acomodada no ônibus aguardando a sua saída aproveitei o Wi-Fi para acessar algum portal de notícias, checar qualquer notificação no Insta ou então no Threads.

Foi no Instagram que a estranha força do algoritmo (que lê nossa mente) logo me mostrou a imagem de Édith Piaf, a eterna voz de “Non, je ne regrette rien”. Mulher baixa, rosto ovalado, cabelos negros cacheados, olhos emotivos, nariz pequeno e levemente arrebitado… Igual à mulher da blusa azul na lanchonete!

Agora eu sabia, mas me perguntava: será que ela sabe quem foi Édith Piaf? É uma pergunta que jamais conhecerei a sua resposta. Bom, o que sabemos, em qualquer distância, incluindo a namorada dela, que, naquela noite, o jogo do Vasco terminou em 2 a 2, o que garantiu ao cruzmaltino a permanência na 11ª posição na tabela.

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