Reencontrei meu primo Antônio. Não nos víamos há, pelo menos, vinte anos, segundo nossas contas fajutas. E tem também minha prima Maria, um pouco menos, cerca de nove a dez anos. Ela é sobrinha dele e, creio eu, nas minhas conclusões precipitadas que seja, por conseguinte, minha prima em segundo grau. Isso tudo fica aqui registrado a título de curiosidade, pois, para mim, há pouca relevância. Por isso meus cálculos são imprecisos, como memória falha de ressaca matutina.
Maria nasceu na semana em que meu pai faleceu, ou seja, há 14 anos. Pertence à geração Z. Em lugar de brincos, usa aqueles fones de ouvido novos que ficam pendurados nas orelhas. Isso me aflige um pouco. Fora isso, ela é uma excelente menina.
Quanto a meu primo sou três anos mais velha (ou seria dois?). Fato é que somos tão parecidos que mal percebemos. Somos cúmplices sem dividir segredos. Trocamos olhares silenciosos sobre falas compridas. Dizemos tanto em tão pouco tempo…
Com Maria não. Ela, menina-mulher, cheia de sonhos e desejos me desperta a vontade de protegê-la e aconselhá-la. Mas isso leva tempo. O tempo de conversa e intimidade. Por agora cabem apenas amenidades.
Elegi a infância, a melhor das oportunidades, a fase transitória comum de todas as gerações. Comecei por uma peripécia própria, um pouco pueril, uma das minhas molecagens prediletas. Foi quando recusei o convite de minha tia — a bisavó de Maria — de acompanhá-la ao Círculo Bíblico para ir jogar sinuca com a minha prima Jô (mãe de Maria) no bar da Vanda. Minha tia, recém-beata, ficou possessa, me classificou como herege, e ainda vociferou, quase cuspindo, que eu era igualzinha a minha mãe (irmã dela, por sinal). Maria, que dá os primeiros passos em direção a “beatidade” se divertiu com tamanha proeza. Por ser obediente demais, isso lhe é impensável. Inimaginável.
Vendo-a hilária, fiquei satisfeita por começar bem. A introdução propiciava novas aberturas. Ali, naquela mesa do café e almoço de minha tia, reuniam-se duas gerações de primos. Logo surgiram as comparações de épocas. “O antigamente era melhor” tornou-se a base de toda e qualquer lembrança.
Maria não sabia que já existiu o futebol de botão, as locadoras de videogames (que meus primos e eu ficávamos atrás dos adultos pedindo dinheiro para jogar). Assim como o discman (a ostentação da época) e o walkman. E foi este, inexplicavelmente, que chamou a atenção de Maria. Quis saber mais, entender melhor.
Meu primo, que parecia não se importar com a conversa, pois estava atento ao próprio celular (coisas da atualidade) decidiu procurar no Google uma imagem do aparelho, mas não sabia escrever. Soletrei. “W-A-L-K-M-A-N. É o mesmo que homem caminhando”. Digitou errado. “Ih, apareceu homem caminhando”, disse sorrindo. “Escreve tudo junto”, respondi. Ele se embaralhou. Tentou do jeito dele. Conseguiu. Evitei saber como ele “tentou”…
E como é de praxe nesse assunto, logo passamos a fazer comparações na música, a qual é uma das minhas prediletas. Em algum momento, Maria disse gostar de sertanejo. Meu primo soltou “ah, os de antigamente eram bem melhores”, enquanto eu “O que você conhece como sertanejo, Maria, não se compara ao verdadeiro sertanejo, hoje é uma mistura só”. Ela se mostrava cada vez mais interessada diante de minha empolgação.
Em vários momentos, entre reflexão e surpresa ela soltava “a minha geração não vive nada disso”. Balançávamos a cabeça negativamente. No misto de agitação e provocação eu soltava “Você tinha que ver, a gente subia nesses pastos todos, cada hora estávamos num canto” ou “só vínhamos aqui, para a casa da tia, para comer, beber água e dormir”.
A conversa rendeu por, pelo menos, uma hora, uma hora e meia. E sempre que ela ressaltava que a geração dela não vivenciava nada disso, incentivava para que ela começasse, para ter histórias a contar no futuro.
O mais gozado foi que, em vários momentos, me vi na Maria, principalmente quando era menor do que ela, criança mesmo, e ouvia os mais velhos não só contarem, mas suspirarem os seus bons tempos. Não esboçava reação, mas prestava atenção a todos os detalhes, pois, curiosa nata, sempre quis saber mais. Tentava imaginar o que descreviam, acompanhava movimentos e silêncios. Não sentia o que eles sentiam, mas imaginava. Um tempo diferente do meu. Estranho e distante para as gerações seguintes. Qualquer espanto é compreensível.
Mas agora, bem agora, lembrei que, certa vez, imbuída em tantas dúvidas existenciais, recebi um conselho “Ananda, vá viver!”. Aceitei com carinho. E, desde então, comecei a ter as minhas próprias histórias, embora (a título de curiosidade) pegue algumas emprestadas por aí. Transito para isso. Escrevo para significá-las.
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