A vizinha de cima se aproximou da vizinha da frente. Deve ter um pouco mais de três meses. Lembro vagarosamente porque foi no dia da mudança da síndica, a qual tentou tirar as suas coisas sem ser notada, mas eu vi. E, pelo mesmo ângulo, vi a vizinha de cima no quintal da vizinha da frente. Olhavam para o prédio e comentavam, o quê exatamente, não sei. Provavelmente, alguma coisa sobre a mudança. Qualquer caminhão de mudança, ambulância ou viatura de polícia chama a atenção.
Não passou muitas semanas após esse fato e a vizinha da frente fez um churrasco. Na verdade, ela sempre faz, pelo menos um por semana.
Em meio a fumaça, cheiro de carne e péssima música em volume perturbador, um copo erguido se destacava no meio da varanda: era o da vizinha de cima. Dançava vagarosamente sem ritmo, dura e em pleno escapismo, o que denunciava que o grau alcoólico havia entrado em curva ascendente.
Observava a cena pelas frestas da cortina. Como ela dançava mal. Lembrei que, em duas oportunidades, ela havia me contado que, quando mais jovem, fase em que nem sonhava em ter filho, ela gostava de frequentar as boates de Vitória e dançava muito. Talvez ao som de música eletrônica, jogos de luzes e gelo seco ela se sobressaía melhor…
Se hoje ela dissesse que está enferrujada, nada diria, mas pensaria “as juntas sofreram intenso processo de oxidação”. Não há compasso, remelexo, gracejo, suingue… E ela bebe. Parece que os braços mal erguidos no ar, sem propósito e nem encaixe, secam a sua garganta. Sei que gosta de um copinho, latinha e latão.
Aumentaram o som. O repertório é sempre o mesmo (ou melhor, pior) é vaquejada, piseiro e o novo sertanejo (que, de fato, nunca foi). Gritinhos de satisfação são vocalizados a cada introdução das músicas. O filho da vizinha de cima, um pré-adolescente, que se encontra na idade em que todos os meninos são bobos, transita pelo interior da casa com familiaridade. Tão rápido. E espantável.
Quando o som e os gritinhos se intensificaram, e os braços voltaram ao ar pensei “é assim que começam os problemas desnecessários”. A vizinha de cima encontrava-se em algum estado alterado de consciência em que ela estava consigo mesma. Há quem saiba e não compreenda. É o mistério alcoólico da sonoridade.
O forrobodó prosseguiu por horas. Não lembro como terminou. E neste fim de semana, num repente, o silêncio foi duramente rompido com “Princesa” do falecido Mc Marcinho, e muito charme (uma vertente do funk antigo, tá). E daí para outros sons previsíveis é o tempo de um compasso. O famoso rugido do tigre do famigerado Bonde do Tigrão ressoou (e deve ter assustado muita gente). Assustador mesmo foi um tal de “Mostra a calcinha / Abaixa e mostra a calcinha…”. Um horror, sem precedentes.
E há um detalhe sonoro sobre a vizinha de cima. Quando a conheci ela se apresentou como professora de piano. Animei-me, pois era a oportunidade de reviver os bons tempos da faculdade em que, periodicamente, assistia a recitais e, na quinzena cultural, quando fui monitora de música, trabalhei em duas oficinas avançadas de piano. Não digo isso para me gabar. Por favor, não crie expectativas, pois não toco o instrumento, mas a minha condição de assistente nessas oficinas propiciou-me aprendizados. A qualquer momento escreverei sobre isso. Prometo.
Voltando a vizinha. Toda vez que toca é um suplício. Não aquece os dedos direito e executa as músicas como se batesse um bife em uma tábua de carnes. Isso sem contar nos erros de notas; sempre as mesmas, e nos mesmos lugares.
Nessa tarde, não foi diferente. A discrepância de sons era percebida no ar. A vizinha da frente com seu gosto duvidoso. A vizinha de cima com o seu pop marretado e complicado.
Porém, há uma estranheza aqui. Lembre-se que me referi a ela como a vizinha de cima. E o de cima significa que ela está no terceiro andar. Assim como o meu, o seu apartamento também fica de frente para a outra vizinha. Considerando os conhecimentos básicos de Física, entende-se que um som emitido se propaga no espaço, ou seja, avança e sobe. E, por isso mesmo, chega primeiro nela do que em mim. Executar uma música em qualquer instrumento exige-se concentração. E como seria possível com toda aquela rajada sonora direta no pé do ouvido?
Pensando bem, a vizinha de cima queria chamar a atenção da vizinha da frente com um singelo “oi, estou em casa”. Nada mais do que isso. Em certa medida, o objetivo foi alcançado, pois a vizinha da frente, sentada devidamente de frente para o prédio com seu copo, seu churrasco e seus convidados de praxe acenou para ela e disse um “Olha ela lá”. Só isso. Não passou disso.
Se a vizinha de cima desejou (e acreditou) por um momento que repetiria aquela noite no quintal da outra, se frustrou. Não foi chamada, e quem lá esteve por lá ficou até tarde. E se amanhã houvesse uma nova oportunidade, uma repetição? Talvez, sim, talvez não.
Parou de tocar piano com a mesma intensidade que sempre começa. E manteve a luz acesa, a qual é visível de longe. Enquanto isso, a playlist da outra vizinha insistia e reverberava na potente e brega caixa de som colorida. De dentro dela saia uma voz fraca e metálica “só fé, só fé, só feeé…”.
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