Lá vem a loira bonita com o seu cachorro ensimesmado. Caminham lado a lado. Ambos são silenciosos. Toda noite de segunda-feira eles passeiam. Do mesmo jeito. No mesmo horário. Um tem o outro como privilégio da vida. São tão cúmplices. Se assemelham tanto. Igual quando acontece com certos casais, os verdadeiros companheiros, que dividem coisas. Tanto que dividem até manias, ao ponto de serem confundidos como irmãos por quem os vê.
A loira, além de ser loira, é curvilínea. E também distraída. O cachorro não. É atento. Jamais abaixa as orelhinhas. Anda empinado. Primeiro porque imita a dona, tanto na intensidade quanto na velocidade e, segundo, porque é um buldogue francês. Talvez quisesse ser mais alto, quem sabe, um cachorro de porte médio; melhor, um cão de médio a grande porte. Cachorrão. Como um pequeno e gracioso buldogue, deve se contentar com sua pequenez, a qual lhe confere charme. Caso contrário, seria estabanado como um dálmata.
Todas as noites de segunda toca uma música melancólica. Aposto em Adele, mas desconfio que possa ser Aretha Franklin. Não sei qual é a música e nem recordo qualquer verso. Caso contrário escreveria aqui, para que pudesses me ajudar ou faria como a maioria “jogaria no Google”. Continuarei assim mesmo, sem nome de música, sem nome de loira e nem de cãozinho charmoso.
O fato é que toda segunda, à noite, na rua calma da escola de dança, toca a música melancólica. A rua é residencial e nenhum morador bota a cara na rua. E se botassem seriam considerados como meros transeuntes, já que as crianças do balé roubam a cena. Não por virtuosismo, e sim por chatice. As crianças são chatas, as suas mães são chatas e os respectivos pais, abobalhados. É uma constante que se repete ano a ano. Não importa a idade e tamanho da criança ou modelo do carro dos pais. É chato.
A loira curvilínea e seu cão adorável não presenciam essas factualidades. Passeiam durante o intervalo da chatice, ou seja, durante as aulas e/ou ensaios. Só ouvem a música melancólica. E muitas das vezes são observados por um gato branco, que adentra e sai de quintais com fluidez.
Nunca consigo ver a loira de frente, embora acredite que seja bela. Ontem a noite (uma segunda) quase tive a chance de descobrir. Estava dentro do carro quando passou por mim. Um pouco mais a frente ela resolveu atravessar a rua. Quando olharia na minha direção, uma longa mecha dos seus cabelos cobriu parte do rosto como um véu.
Seguiu calmamente do outro lado da rua sem olhar uma única vez para trás. Como pode? Cismada, como sou, teria olhado diversas vezes para evitar sobressaltos. Ainda mais depois que uma mulher desconhecida ao me ver mexendo no celular resolveu me avisar que ali era arriscado. “Estão assaltando aqui demais! Vêm de moto, dessas com baú. Na semana passada levaram o meu aparelho”.
Olhava distraidamente o gato branco passando perto de mim quando soou um berro estridente. Por instinto olhei todos os lados imaginando o pior, mas não era nada de ruim (ainda bem!). Era só uma criança. Previsível. Em uma escola cheia delas alguma terá a necessidade de berrar.
Acredito que encobriu a música melancólica, pois alguém, no carro estacionado do outro lado da rua, se assustou. Olhei para o vigia, mas esse nem se mexeu. Na certa, já está acostumado com esses rompantes infantis. Como também pouco se importou quando o professor hispano de balé que gritava a plenos pulmões perenes “derecha”, “atención” e “plié sauté”.
Toda segunda é difícil. É cansativa. As noites de segunda são sentidas. A música melancólica faz lembrar toda a trajetória do dia. Faz doer os músculos machucados por excessos ou desleixos e amolece os demais. Naquela rua calma tudo se torna mais vagaroso e escorregadio. Como o gato que agora atravessa a rua despreocupado em sintonia com o som de um piano.
É uma gravação que vem da escola de dança. Trata-se de um jazz com música erudita. É bonita a melodia. É bonito o atravessar sincronizado do gato. Ele é um bailarino por excelência. Incrível como encaixa suas passadas macias com as notas musicais. Dentro do ritmo e com elegância. Elegância de bailarino de dança contemporânea. É delgado. A rua é o palco do bichano. As calçadas, sua coxia.
A trilha sonora do felino envolve a loira curvilínea e seu cão charmoso. É um convite para dançar. Será que ela sabe? Será que ela percebe? Será que ela desconfia que segue com os seus passos leves sobre a coxia/calçada?
É uma questão que não leva a nada. É um movimento solene onde repousa a compreensão exata. O gato para na calçada e olha em direção a loira. Faço o mesmo. Ela segue calmamente a rua com o seu cão atento.
Distancia-se aos poucos enquanto a música melancólica toca novamente. O cão com as suas orelhas erguidas para. A loira curvilínea olha para ele, e somente para ele. Não é nada demais. Seguem o seu trajeto. Sempre mirando em frente.
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