Melhor ir do que perdoar

Prometi na semana passada falar sobre as pequenas experiências de minha última viagem. Cumpro aqui. Este é o texto.

Reporto-me à Iconha, minha rota de passagem. Trata-se de uma pequena cidade no sul capixaba, conhecida como a “cidade dos caminhoneiros”, que não só trafegam, mas também movimentam a economia local.

Desta última vez, choveu, o que me impediu de ir à praça ver a decoração natalina, assim como de subir as escadarias da igreja e desfrutar um pouco de paz e ar fresco. Sentei-me em um banco de madeira em frente à rodoviária, mas não pude permanecer muito tempo, já que uma mulher doida, dessas cheias de bolsas que, ao caminhar, se parecem com verdadeiros caramujos, logo me expulsou. Ela resolveu borrifar o banco com álcool; a quantidade foi exagerada e comecei a espirrar. Ela só resmungava enquanto cobria todo o banco com papelão. Depois, amontoou todas as suas bolsas e quinquilharias, sentou-se sobre uma delas e começou a comer: primeiro um hambúrguer, depois goiabinhas com suco e, por último, biscoitos de polvilho. Que provocação estomacal! Senti fome, ainda mais porque não havia almoçado naquele dia. Estava fraca e com a pressão levemente baixa.

A chuva insistia, fraca e chata. A área coberta era pequena. Precisava me proteger, assim como minha mochila. Dentro de poucas horas embarcaria em um ônibus com ar-condicionado. Não poderia gripar mais; bastava o que já enfrentava com a otite, dia sim e outro também. Acompanhava os fios compridos de água caírem harmoniosos em diagonal, pela luz dos postes.

Um carro parou à minha frente. Com um pouco mais de intensidade, eu me banharia naquela poça toda à minha frente; parecia um desenho de lagoa. Saiu do carro um velho baixinho, mas altivo. Ele abriu o porta-malas e retirou várias bolsas de tamanhos diferentes. Do carona saiu uma senhora também altiva. Logo ela se aproximou de mim. Iria para São Paulo.

Puxou conversa. As pessoas, principalmente as mais velhas, costumam se simpatizar comigo. Falou da chuva, do filho, de São Paulo e de Piúma (onde mora). E, como é comum nessas ocasiões, começou a contar sobre sua vida. Por mais que parecesse uma senhora legal, eu queria ficar quieta; sentia cansaço, fome e, claro, otite. Qualquer esforço – por menor que fosse da minha parte – intensificaria a dor.

Restava-me deixá-la falar. Fiz leitura labial e corporal; tinha 75 anos, conforme mencionara. A pele era bastante enrugada – não tanto pela idade, mas pelo fato de ser fumante (e a voz enferrujada entregava isso) – o que contrastava com seu porte enérgico e dinâmico.

Criticou o fato das pessoas deixarem de conversar e aproveitar os ambientes em prol do celular; disse que gosta de estar no meio dos “xóvens” e de beber sua cervejinha… Animada pela minha atenção devotada – um disfarce em rascunho das minhas leituras – sentiu-se à vontade para contar um detalhe delicado e decisivo da sua vida: como foi parar ali.

Era casada e teve um filho. O casal começou a visitar Piúma como turistas. Em algum momento – que se tornou inteligível – ela descobriu que estava sendo traída. Resolveu ver com os próprios olhos e quase pegou seu marido em ato vil. Decidiu que se separaria; não dava para perdoar isso. E deixou que o filho escolhesse com quem ficaria: ele preferiu o pai. Senti que aquela decisão fora outro golpe duro contra ela; traição é dor latente.

Precisou seguir em frente e encontrou refúgio em Piúma. Embora mostrasse força e certa vingança – uma vingança sutil –, pois seu ex-marido não aproveitou tanto o romance já que logo ficou viúvo, havia sinais claros de tristeza nas rugas retas, precisas e diagonais.

Como toda mãe é boba, boa parte daquela enorme bagagem continha comida pré-preparada – incluindo pescado e camarão para agradar o rebento –, já era costume dela durante as viagens.

Agora, passadas duas semanas, penso nela. Lembro que meu ônibus chegou primeiro e demorou a sair; lá do alto da poltrona confortavelmente reclinada observava-a por trás da fina cortina da chuva. Ela fumava enquanto conversava com um velho; senti uma inexplicável compaixão por ela. Parecia ter me esquecido como esqueci rapidamente da doida. Ainda assim guardei seu nome como bilhete de passagem: Dagmar.

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