Não sinto mais vontade de discutir. Não é impaciência, parcimônia ou qualquer coisa contrária. Talvez seja uma preguiça, uma preguiça social. Desmotivação.
Na semana passada, quando manobrava o carro na minha vaga, notei que um vizinho havia deixado entreaberto o portão por onde ele adentra com seu veículo. Como o vi andando cabisbaixo pela recepção, buzinei e acenei para a vaga dele. Demorou alguns segundos, mas ele retornou e viu do que se tratava. Acionou o controle e fechou completamente o portão. Caso contrário, o portão permaneceria entreaberto durante toda a noite, oferecendo perigo e transtorno.
O primeiro seria uma possível invasão seguida de assalto e/ou roubo; o segundo, a impossibilidade de outros carros (a maioria, inclusive o meu) entrarem ou saírem da garagem, já que isso impediria a abertura completa do portão principal, visto que ambos deslizam pelo mesmo trilho. De início, só pensei no primeiro.
Por ser um daqueles vizinhos “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”, com quem troquei poucas palavras durante uns 10 minutos em uma única oportunidade – que foi justamente quando precisou de mim e eu configurei o controle do portão dele – pensei que ele iria apenas me agradecer e voltar ao seu andar taciturno de antes. Mas não. Ele veio em minha direção.
Queria conversar. Nem eu, nem Rosaline estávamos dispostas. Queríamos apenas subir com as compras, junto com uma de nossas cachorras, e finalmente descansar após mais um dia cansativo.
Ele não sabia disso. Não reparou. Apenas começou a falar. Contou coisas que eu já sabia: que ficava poucos dias no apartamento (o qual é inquilino), que acorda cedo todos os dias (levanta-se às 5 da manhã), que tem filhas adolescentes, que não reclama de nada nem de ninguém no prédio (abriu uma exceção para as duas crianças do apartamento ao lado dele, que fizeram tanta bagunça que precisou reclamar com a síndica). Disse que sabia que eu cuidava dos gatos que ficam na garagem, que conhece poucos vizinhos (e que aquela era a oportunidade de conversar comigo), que tem três carros (o Renegade é da mulher dele), que, de vez em quando, dá “uns perdidos” na mulher e vai a uma balada (que eu não lembro o nome por não saber nem onde fica), e que trabalha muito com a cabeça e toma Gardenal (esse último foi novidade para mim).
Durante toda aquela explanação, mal consegui falar uma frase. Balbuciei palavras como uma criança pequena em fase de desenvolvimento. Também não fiz questão. Naquela pequena roda, o cansaço era o quarto elemento. Luna, nossa cachorrinha, que estava no meu colo, me esquentava, elevando a temperatura do momento. Logo comecei a ficar incomodada, pois, se ela continuasse a se encostar em mim, seus pelos entrariam em contato imediato com a minha pele e desencadeariam uma coceira interminável (não sei quando e como desenvolvi alergia a pelos).
Rosaline, surpreendentemente mais receptiva ao monólogo, também demonstrava cansaço. Percebia em seu olhar algo diferente e curioso. Ela queria me dizer algo, e eu, como sempre, queria saber. Pressenti alguns pingos de chuva e, embora a garagem seja parcialmente coberta, poderia ser a chance de sair daquela conversa. Porque chuva sempre espanta.
Mas ela, a sublime água celeste, não veio; mas parece que o vizinho, de alguma forma, pressentiu a possibilidade e movimentou-se. Acompanhei o passo para encorajá-lo. Ele seguiu inconscientemente. Não parava de falar e minha mente dispersava.
Ele era um homem ligeiramente magro, bastante envelhecido devido à compulsão por cigarros. Mesmo que não o notasse, saberia reconhecer sua presença no prédio, pois o cheiro de nicotina pairava no apartamento dele e contaminava o corredor.
Na maior parte das vezes, gostava de falar do seu trabalho, que era interessante somente para ele. Não sei se é topografia… É alguma coisa nesse sentido. Engraçado era reparar como ele falava. Parecia mascar as palavras na lateral da boca como quem masca chiclete ou, o mais apropriado no caso, fumo. Isso lhe conferia um ar de antipatia. Mesmo se eu ouvisse bem, dispersaria facilmente.
Adiantei o passo. Fui seguida por Rosaline e ele veio por último. Não havia escapatória, pois ele mora no mesmo andar que o nosso, do lado oposto. A fumaça do cigarro não nos alcançava desde que permanecêssemos dentro do apartamento.
Não sei se em algum momento ele me agradeceu. Quando finalizei a subida da escada e contornei o corrimão para seguir pelo corredor em direção ao meu apartamento, adiantei um “boa noite”. Qualquer insistência na falação poderia ser tratada melhor por Rosaline; ainda que as respostas monossilábicas não garantissem chances de êxito nesse instante. E ela teve sorte. Conseguiu sair. Ele ainda continuou falando ao adentrar no apartamento. Rosaline apressou o passo e entrou rapidamente. Vai que ele abrisse a porta dele ao “lembrar” e quisesse falar mais alguma coisa?
Como o cansaço é sujeito imperativo, não demoramos a ajeitar tudo que precisássemos para poder dormir. Era questão de necessidade. Logo pela manhã seguinte, na mesa do café da manhã, reparo novamente no olhar brilhante de Rosaline um ar de surpresa. Espectadora de seus próprios pensamentos repassava cronologicamente a “conversa do vizinho”.
“Não acredito que em sei lá quantos minutos ele contou a vida dele para você…”, falou sem perceber que deixara cair um pedaço de queijo que Luna, atentíssima, abocanhou de uma só vez.
“Sim. Isso aconteceu porque eu o deixei falar sem interrompê-lo”, disse enquanto sorvia o café.
Ainda procurando pelo pedaço de queijo, ela soltou: “Isso é tudo por causa da carência. Hoje as pessoas estão assim…”.
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