Ela olhava para mim; foi instantâneo. Ela mal havia chegado à janela que dá para a rua. Eu estava na esquina, pois não sabia exatamente qual ônibus passaria primeiro e por qual caminho. Na dúvida, a esquina era o meio.
Sou notável e me faço notável, vestida de preto da cabeça aos pés (estes bem aconchegados dentro das botas). Por mais discreta que se possa tentar ser, sei que é difícil atingir esse objetivo. Há um destaque em meio àqueles que preferem roupas claras, tênis e chinelos. A desculpa é o calor. Meus trajes são a minha identificação. Minha mãe me chama de bruxa; minha tia (irmã dela) não entende e percebo que fica escabreada.
Escabreada também estava aquela idosa, cuja janela mal a cabia. Sentia o comichão da curiosidade. Olhava para os lados e me incluía. Quando eu estava distraída contemplando os cafezais nos morros – um à minha esquerda e outro à minha direita, e eu estava entre eles – a idosa apareceu na calçada. Delgada e negra, ela vestia um vestido longo azul que lhe conferia decência. Chutaria que teria uns 70 anos, mas na certa erraria, já que deveria ter bem mais. Como se sabe, os negros não aparentam idade, graças à força da melanina, substância invejada em segredo; que o digam os brancos, que quando envelhecem, envelhecem mais e pior.
Com um olhar ávido e andar um pouco cambaleante (o qual não reparo, pois tenho labirintite), ela veio em minha direção. Julguei que passaria por mim, talvez me cumprimentasse, e assim eu voltaria a vigiar o ônibus e contemplar os cafezais. Ela realmente me cumprimentou e parou à minha frente. Olhou-me com a bondade típica da idade e perguntou com voz suave e carregada, também típica da idade:
— Você vai descer para o Alegre?
— Sim. O ônibus está atrasado hoje? — (Pelos meus cálculos baseados nos da minha tia, o atraso era de vinte minutos).
— É, está um pouco sim. Quando ele vem, encontra aqui o que vai para Guaçuí — ela completou.
— Verdade, é isso mesmo — eram as palavras que eu tinha naquele momento.
Nos instantes seguintes, ela começou a contar sua vida. Estava morando ali em Celina há dois anos. Era do Alegre. Trabalhou como enfermeira e relembrou o nome de antigos prefeitos; nomes que guardo como lembranças de infância “de tanto ouvir falar”. Após me olhar da cabeça aos pés, evocou um novo incômodo com a pergunta:
— Você trabalha com o quê?
Como não quis falar — porque falar é explicar — pensei rápido e soltei:
— Com viagem.
Ela, curiosa, insistiu:
— Guia de turismo?
Eu, em meio a gaguejos:
— Não, representante.
Ela fazia cálculos mentais sem me perder do seu ângulo de visão.
— Minha irmã… há dois anos sofri um infarto…
Pasma, quando comecei a pensar sobre isso ela emendou:
— Minha irmã… eu já fui a Trindade, em Goiás.
Na certa minha resposta despertara a lembrança.
— Eu tenho uma irmã que morava em Brasília. Agora ela está aqui… Minha irmã… lá em Brasília… eu estava na casa da minha irmã… A excursão ia para Trindade… O quarto onde fiquei era assim… Aí o guia falou para estar pronta às 7 horas e eu acabei perdendo a hora… Aí minha irmã… procurei o guia.
Eu não entendi essa parte. Não sei se foi culpa da minha distração ou se houve uma falha no enredo dela; essas coisas tendem a acontecer em diálogos monopolizados com alguma frequência.
Começava a ficar impaciente. Quem? Eu! Consultava o relógio e nenhum sinal do ônibus. Enquanto ela retomava sua narrativa: “minha irmã…” passou o ônibus que circulava por fora pela rodovia 482. Foi tão rápido que só vi de relance. Assustei-me. E se não viesse o outro que passaria dentro de Celina? E se o atendente do terminal de Bom Jesus estivesse certo e o outro ônibus realmente não passasse? O receio veio da minha incredulidade quando ele disse: “Hoje o outro não passa; só passa o viação X pela rodovia.” Ele não poderia estar certo; era absurdo aquela informação! O ônibus passa todos os dias! Sempre foi assim desde antes do meu nascimento.
— Minha irmã… eu trabalhei durante muitos anos para a mãe do (e citou o nome de um antigo prefeito de Alegre). Também trabalhei como enfermeira no asilo…
Quando os olhos dela não firmavam diretamente nos meus, ela me media da cabeça aos pés (ou das botas) com precisão. Preferi permanecer quieta, procurando com o olhar qualquer coisa, um refúgio de silêncio. Quando olhei para o cafezal que fica na direção da vinda do ônibus, ela soltou:
— Minha irmã, já trabalhei muito com isso: café. Eram tempos difíceis. Gente da minha cor sofria muito — e emendou — Minha irmã, trabalhei muitos anos como enfermeira e agora moro aqui há dois anos. Vá com Deus.
E ela retornou para sua casa do mesmo modo que viera. Foi no tempo de um suspiro que o ônibus surgiu. Quando subi, novos olhares me esperavam. Como de costume.
Desci para o Alegre e segui para Cachoeiro pensando sobre aquela figura marcante. Ela falou tanto de si, contou sobre sua vida. Faltou somente o nome. Há tantos que combinavam com ela: Ana, Maria, Ângela. Mesmo que quisesse, não adiantaria contar sobre mim, pois ela estava mergulhada em suas próprias lembranças. Deixei para ela algumas impressões. Quais? Não sei. E não há importância. Seu olhar fixo e perdido no entorno, com o sonoro “Minha irmã…” ainda ressoa em mim. Lembra assovios.
A curiosidade é tua irmã

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