Nem todo carnaval tem seu fim

Te vejo. Agora é tão exato quanto provável o que sinto. Saudades têm nome: você. Acho que posso sentir o teu respirar. Rompia o silêncio. Afinal, ensimesmado, você tinha tantas questões, embora preferisse ouvir mais do que falar. Era o seu modo de pensar.

Te encontrei hoje. Foi bom te observar, acompanhar teus traços. Tenho sua timidez e seu riso discreto, pequeno, como traço de caráter. Sabe, isso lhe conferia charme: belo, intelectual, gentil. Lembrei agora do teu sotaque carioca. Um carioca virginiano, do primeiro decanato, símbolo de disciplina. Acho que agora, após tantos anos, aprendi contigo. Na época era difícil. Sou signo de ar; comigo tudo flui sem que eu perceba. E só agora, após tanto tempo, percebo tantas coisas suas…

Hoje é domingo de carnaval; estamos em 2025. Sem esforço e nem perceber, reporto-me a 2005, em um carnaval em Ouro Preto. Você morava numa república no bairro Bauxita. Lembro que me contou que era comum os bairros de lá receberem nomes de pedras e minerais; achei curioso, engraçado e lógico. Há tanta história por baixo de cada pedra-sabão distribuídas por vielas, ruas e calçadas (ou passeios, como os mineiros assim falam). É tão sólido tudo o que ali permanece; a história é viva.

Distraio-me. Em todas as fotos você esconde o sorriso; eu não. E olha que eu usava aparelho! Julgo que seja a tua timidez, aliada de todas as horas. Naquele carnaval, bebemos muito; a todo momento estávamos com alguma lata nas mãos. Estávamos diferentes do ano anterior; éramos certinhos. Eu me cuidava por causa do vestibular — foram dois anos sem sentir o cheiro do álcool. Você? Você era certinho mesmo, mesmo com suas questões.

Há tantas coisas suas impregnadas nas fotos Kodak que recuperei na semana passada. Só eu sei o que vejo e sinto; não direi muito, talvez por alto. Falar de você é falar de mim. As tuas questões também eram as minhas, mas guardei o momento certo para que falássemos sem receios e tornássemos cúmplices através de um abraço, um sorriso no canto do lábio e um olhar irmão de “tudo ficará bem”.

Talvez você não saiba, mas o Carnaval de Ouro Preto de 2005 foi o melhor — na certa esqueci de te contar! Fui de carona em companhia do Anselmo, meu colega de filosofia na UFSJ. É engraçado notar que nas fotos em que nós três aparecemos estávamos um pouco altos, embriagados — nós três: os três filhos únicos! Anselmo, como você, me inspirava; ambos eram muito inteligentes e gentis também.

Há tanta coisa para se lembrar daquele momento do percurso que fizemos por várias repúblicas! Sem perceber, estávamos na do Contente; na certa você lembra dele — ele fazia História! Antes de ir para lá, ele estudou muito tempo comigo no Polivalente. Rolou um clima legal entre ele e a Flávia; achei tão bonito! Ela tinha chegado com a Fabi dias antes na sua república para se hospedar: se tivéssemos combinado (elas e eu) não teria dado certo! Fabi continuava a mesma; ficou só na Coca-Cola o tempo todo — não sei como ela nos aguentou! Pior: sabe o que eu lembrei? Em uma daquelas noites a Fabi me levou ao banheiro e me jogou embaixo do chuveiro gelado; cheguei a bater o joelho na quina do vaso! Resultado? Roxidão e gripe por vários dias!

Não lembro o que comemos nem onde — com exceção dos cafés! Perto da sua república tinha uma padaria que fazia um pão de queijo divino: um dos melhores que já experimentei! O resto era bebedeira e de vez em quando um Gudang para relaxar em meio à folia; falavam que havia maconha na composição — se tinha nunca soubemos! Nada superava o que o alto volume de cervejas proporcionava; mas os Gudangs de chocolate ou canela eram excelentes!

Fico pensando se você ainda ouve Legião Urbana; pelo que me lembro a banda selou nossa amizade! Mas naquele carnaval nos rendemos ao axé baiano — tudo bem, era válido! Toda hora fazíamos a coreografia do “Sou praiero…”. Tem até foto! Alguns meninos da sua república estavam lá; se eu lembrasse os nomes poderia me dar notícias deles! Fiquei curiosa para saber por onde anda cada um: as meninas e você! A Flávia tinha planos de ir para a Itália; a Fabi estagiava em Vila Velha (ela respirava direito); você… qual era a Engenharia mesmo? Mineral?

É engraçado a sensação que se tem sobre os momentos épicos: parece que continuam existindo em algum lugar — e já se passaram 20 anos né? Na terça à noite todo mundo começou a ir embora; tudo começou a se aquietar. Levamos as meninas à rodoviária; no dia seguinte logo cedo Anselmo e eu iríamos para a estrada pegar carona de volta para São João del-Rei. Antes disso ainda na sua república, quando você e os meninos arrumavam toda aquela bagunça Anselmo e eu bebíamos mais algumas cervejas enquanto o rádio estava ligado.

Em algum momento, tocou “Vestido Estampado”, da Ana Carolina. Aquilo não foi uma simples execução; foi uma trilha cuja cena prenunciava os dias seguintes. Você não soube. Anselmo tinha uma ideia. Uma neblina cobriu parte da sua rua, o que dava um aspecto sinistro. Observava com distração e bebia sem pressa. Fiz isso para sentir aquelas últimas horas. E parece que ainda sinto, acredita?

Sabe, penso agora onde estarás. Da última vez, era BH, mas faz tanto tempo. Estou entre o Rio e Alegre. Estou assim há algum tempo. Leio o jornal para saber a ordem dos desfiles das escolas de samba. Torço para que a Vai-Vai e o Salgueiro não desfilem lá pelas tantas. Quero assistir. Quero torcer.

Pensei em te procurar nas redes sociais, pois é onde todo mundo está. Mas, se te achar, demorarei a enviar uma mensagem. É preciso um tempo para elaborar palavra por palavra; é muita coisa envolvida. Estamos em outra fase e com outras questões.

Encontro uma conta com um nome parecido com o seu. Clico no perfil. Na primeira postagem, uma música toca: “Todo carnaval tem seu fim”. Não sei se é você, pois a imagem é um avatar. Repenso que talvez seja melhor não te procurar e manter as coisas como estão: memória intacta. É uma questão de preservação.

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