A suspeita vida digital da minha vizinha

Desde que surgiram os blogueiros, que subiram de nível e agora ostentam o cargo de influenciadores; desde que passaram a falar de tudo, saber de tudo um pouco mais, e como parturientes, sempre geram soluções antes do nascimento dos problemas, passei a ter comigo uma questão embrionária: será que praticam o que tanto apregoam?

Em todo canto se encontra um, e perto de mim há uma. Descobri, por mera sugestão do Instagram — que indica o que não me interessa — que minha vizinha é agora criadora de conteúdo digital. Como ela é professora de piano para iniciantes, julguei que sua conta trataria disso. Não. Em vez de partitura, música e teclas desafinadas de seu piano, ela resolveu se aventurar no improvável: organização caseira. Ela está para esta área como eu estou para o manuseio de agulhas no tricô e crochê.

Curiosa que sou, resolvi espiar melhor a conta. Quem sabe aprenderia alguma dica preciosa que salvaria meu dia com os cansativos afazeres de casa? Um de seus primeiros vídeos a mostrava protagonizando uma faxina. Sobre uma cadeira, lavava uma janela da cozinha. Para mim, limpar vidros é a tarefa doméstica mais árdua e, talvez ao vê-la empenhada com uma mangueira nas mãos, eu me sentisse estimulada a fazer o mesmo — e quem sabe de uma forma mais prática e rápida. Assisti duas vezes, acionei a legenda e no fim não teve nada demais: uma lavagem como outra qualquer. O modus operandi permanece o mesmo e ainda sem estímulo eu lavaria as janelas do meu apartamento do meu jeito.

Na postagem seguinte, ela fez um vídeo mostrando toda a compra do supermercado distribuída sobre uma bancada, cujos itens deveriam durar por alguns dias. O valor pago era alto pela quantidade e qualidade dos produtos.

Lembro que, neste dia, deparei com uma caixa e uma ecobag bem na passagem da recepção, logo após a porta de vidro. Esta não sofreria nenhum impedimento para ser aberta, mas como era noite e a recepção estava com pouca iluminação, qualquer distraído (inclusive eu) poderia chutar facilmente aquela caixa. E este não era um fato isolado; já havia ocorrido várias vezes anteriormente. Por isso, pelo conteúdo, tamanho e posicionamento, identificava logo a quem pertencia.

Como ela não dirige — até dois anos atrás prometia que ia tirar a CNH — costuma carregar suas compras por meio de táxi ou Uber. Com a ajuda do filho adolescente, retira as compras do carro, abre o portão, atravessa a garagem e coloca na recepção para depois, aos poucos, subir com tudo pelas escadas até o seu apartamento no terceiro andar. O problema é que o tráfego demora a ser realizado e aquelas compras permanecem na rota de passagem por horas. O gozado é que se fosse de outro morador, ela reclamaria. Diria que era um absurdo, uma bagunça e tal. Mas as coisas são dela…

Em outra postagem, publicou um vídeo na cozinha para mostrar que cozinhava feijão em uma panela elétrica. Colocou “Pretty Woman”, do Roy Orbison, de trilha, mas a música não combinou com o vídeo; se tivesse ido para os stories, seria mais adequado. Não passou nenhuma dica e não me despertou a vontade de comer feijão (nem quando postou outro vídeo semelhante com trilha de “Energia de Gostosa”, da Ivete Sangalo). Olhando novamente, percebi que no final ela mostrou a embalagem do pacote com a respectiva marca. Seria um bom rascunho para uma publi, mas ela ainda possui poucos seguidores.

E por falar em stories, todos os dias ela coloca um vídeo desejando boa noite com a leitura de uma mensagem aleatória do livro “Pão Nosso”, de Chico Xavier. Em uma dessas várias oportunidades, ela inseriu como trilha a clássica “Bagatelle ‘Für Elise’ do Giovanni Umberto Battel”, que mais uma vez não combinou com a proposta. Pior: se a mãe dela descobrir… A septuagenária é beata daquelas antigas que só usam vestido e observam todos os sacramentos da igreja. Se descobrir… Ai de ti, oh vizinha influencer! Bom, ao menos na noite seguinte ela utilizou outra mensagem do livro e acertou na trilha: “Piano Sonata ‘Moonlight Sonata’, do Vadim Chaimovich”. Se por acaso você não sabe qual é, tenha em mente que é a mesma utilizada pelos espíritas em diversas ocasiões, desde reuniões até filmes.

No post seguinte, ela retornou à cozinha para mostrar um tabule para acompanhar o café da manhã. Gosto do prato, mas não senti desejo de comê-lo; e olha que não sou de fechar a boca para os pratos libaneses, árabes…

Rolo novamente a página para cima e para baixo rapidamente porque a conta é nova e possui apenas 16 postagens. Quando retorno à bio, percebo que ela inseriu abaixo da categoria as frases: “Organização e praticidade… Menos coisas e uma vida leve…” Acho curioso pois faz uns três meses (com margem de erro para mais um ou mesmo dois) que ela retirou a máquina de lavar do apartamento dela e colocou na sua vaga de garagem. O eletrodoméstico ali reside cheio de poeira, com vários adesivos de emojis fixados e servindo de escora para as bicicletas do filho dela. E quem conhece a rotina de um condomínio sabe que isso fere as regras. E em qualquer oportunidade ela justificará que aguarda alguém vir retirar — um alguém que nunca chega. E lá se vão mais três meses (com considerável margem de erro para mais um ou dois).

Agora, ela acabou de postar um vídeo mostrando a faxina que fez no quarto do filho. Foi tão acelerado e com a trilha alta de “Vou Deixar”, do Skank, que não pude assimilar o trabalho que ela fez. Lembro que no final do vídeo ela inseriu uma legenda: “Que paz. Tudo limpo.” Bom para ela; pois fiquei tonta e agitada. Atacou minha labirintite! Vai passar… Daqui a pouco ela colocará mais uma mensagem do livro “Pão Nosso”. Vou me acalmar — mesmo sem nenhuma dica.

Uma resposta para “A suspeita vida digital da minha vizinha”

  1. Avatar de Evaldo Martins Pinheiro
    Evaldo Martins Pinheiro

    Esse texto tem um tom irônico, observador e levemente crítico, e revela muito mais do que aparenta à primeira vista. Ao analisar com atenção, é possível identificar várias camadas de significado e interpretações sobre os personagens e o contexto narrado. Vamos destrinchar os principais pontos por trás das entrelinhas:

    1. A narradora: entre o ceticismo e a curiosidade
    Observadora perspicaz: a narradora está atenta aos detalhes do cotidiano da vizinha e demonstra certo ceticismo quanto à veracidade ou coerência do conteúdo publicado nas redes.

    Crítica social velada: há uma crítica à cultura dos “influenciadores digitais”, que, segundo ela, muitas vezes não praticam o que pregam.

    Ambiguidade de sentimentos: ela parece dividir-se entre o desprezo pela superficialidade dos conteúdos e uma curiosidade quase involuntária – afinal, continua assistindo aos vídeos.

    Autoironia discreta: em alguns momentos, a narradora ri de si mesma, como quando fala sobre sua própria falta de habilidade com tricô e crochê, ou sua expectativa frustrada de aprender uma dica doméstica útil.

    2. A vizinha “influencer”
    Contradições marcantes:

    Fala de organização, mas deixa a máquina de lavar na garagem há meses.

    Proclama praticidade e vida leve, mas suas ações demonstram o contrário (como deixar as compras na passagem por horas).

    Promove vídeos caseiros, mas sem conteúdo prático ou envolvente.

    Busca por validação: ainda com poucos seguidores, tenta emular influenciadores maiores (trilhas sonoras, efeitos, hashtags), mas sem domínio técnico ou autenticidade que sustente essa persona.

    Imagem fabricada: constrói uma “versão idealizada” de si mesma nas redes, mas não condizente com a realidade vivida no condomínio.

    3. As redes sociais como palco de encenação
    Aparência vs. realidade: o texto revela essa distância entre o que se mostra nas redes e o que se vive de fato. A “influencer” fala de uma vida prática e leve, mas a vizinha que convive com ela vê desorganização e incoerência.

    Performance digital: o uso das músicas inadequadas, das frases motivacionais e dos vídeos rápidos evidencia uma tentativa de criar um “personagem” digital que não tem respaldo no cotidiano.

    4. Hipocrisia e julgamento social
    Padrões duplos: a vizinha critica os outros por deixarem coisas na passagem, mas faz o mesmo. Esse comportamento revela hipocrisia, um traço bastante humano.

    O julgamento da narradora: embora tente manter um tom despretensioso, a narradora julga a vizinha com certa severidade – e isso também diz algo sobre ela: talvez sinta incômodo com o sucesso (ainda que incipiente) da outra, ou um certo desconforto com a exposição pública da vida privada.

    Religião como pano de fundo irônico: a leitura do “Pão Nosso” com trilha de música clássica “errada” é quase uma provocação involuntária à mãe beata. Isso revela um choque entre o tradicional (a mãe) e o contemporâneo (a filha influenciadora).

    5. Reflexão maior: autenticidade, aparência e frustração
    O texto toca numa questão muito atual: a superficialidade das redes e o vazio por trás de muitas “vidas perfeitas” que são promovidas.

    A narradora parece frustrada com a promessa de que a internet pode facilitar a vida – e que, na prática, ela continua lavando a janela “do seu jeito”.

    A conta da vizinha não entrega o que promete, e isso ecoa uma desilusão com o mundo dos “conteúdos fáceis” que prometem soluções rápidas, mas são apenas uma performance vazia.

    Conclusão:
    Este não é apenas um relato cômico de uma vizinha influenciadora; é uma crônica contemporânea sobre a sociedade das aparências, o desejo de protagonismo digital, a incoerência entre discurso e prática e os pequenos conflitos e observações do cotidiano. A narradora é tanto crítica quanto cúmplice, o que humaniza sua posição: talvez todos nós, de alguma forma, estejamos presos nesse jogo entre o que somos e o que parecemos ser.

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