Tempo de Quaresma

Estamos na quaresma. É um período de quarenta dias, bom para se despir completamente de todos os miasmas do carnaval. Há quem entenda de ervas e resolva o problema rápido, com um banho ou chá. Aqueles desprovidos dos conhecimentos antigos devem se apegar às orações. Os mais convictos acrescentam jejum e os mais tradicionais fazem sacrifícios. E estes me impressionam, pois abrem mão de prazeres sem pestanejar. Os mais comuns, que persistem ao longo do tempo, são: suspender a bebida, o cigarro, abster-se de carne e de sexo.

Certa vez, fiquei sabendo de um que se absteve de palavrão. Esse sofreu porque era desbocado. Vez ou outra esquecia e soltava um. Assim que saía, batia na boca, bebia consideráveis goles de água e pedia perdão aos céus – entre arrotos e engasgos – com medo de algum castigo. Afinal, esse período é estranho. Dizem que é por causa do diabo que, ao se ver livre, aproveita para andar pelos cantos do mundo e tentar as pessoas. O que, diga-se de passagem, não é tarefa difícil. Uma cutucada aqui, outra ali e lá se vai mais um pobre ser em queda livre rumo à perdição. Facinho, facinho.

Nos meus bons tempos de faculdade, vi o quanto a tradição do respeito é levada a sério. Em São João del-Rei, como em tantas outras cidades históricas mineiras – e também nas não tão históricas assim – até os bares noturnos deixam de funcionar neste período.

Costumava caminhar à noite e percebi o quanto as ruas se tornavam sombrias devido ao recolhimento das pessoas. De vez em quando, um latido modesto ao longe e um olhar inquiridor de um felino em alguma varanda diziam: “O que você está fazendo aqui? Recolha-se rápido”.

É que existem as lendas, uma mais assombrosa do que a outra. E tal fama chegou a ser homenageada por Fernando Sabino em seu magnânimo livro “O Grande Mentecapto”. Todos os nativos, do velho ao novo, conhecem as lendas. Não contarei aqui, pois são de arrepiar. Só de pensar, os pelos dos meus braços eriçam. Imagine você que me lê agora: não irá dormir e me culpará pela sua insônia. Prefiro evitar esse dissabor entre nós, ok?

Mas o que quero mesmo falar é sobre os sacrifícios propostos por quem segue a tradição da quaresma. Lá em São João del-Rei conheci o irmão de uma amiga que se absteve de carne. E todo dia ele riscava um pauzinho no calendário do seu quarto. Parecia um daqueles presidiários que em suas celas agarrados a um fio invisível de esperança riscam as paredes para não “perderem o tempo”, mas ele acaba acontecendo sem que eles percebam… Mas ele, o irmão da minha amiga, sofreu de angústia não pela falta de carne, mas sim pelas festas noturnas: os populares bailes.

Quando se aproximou da Semana Santa, entrou em contagem regressiva. O sábado de aleluia é a libertação de todo e qualquer sacrifício. Ele, adolescente com todos os hormônios efervescentes precisava daquilo! Quando anoiteceu no sábado ele se arrumou todo para sair; pendurou um terço no pescoço “para protegê-lo na rua” e saiu feliz! Não duvido que tenha sussurrado alguma aleluia; de todo modo estava aliviado.

Dos sacrifícios mais recentes a tendência é se abster de açúcar, PlayStation e celular! Sim, você leu estes dois últimos! E cá para nós: nesta hiperconexão em que vivemos abrir mão principalmente do celular é o maior dos sacrifícios a que o indivíduo possa se sujeitar.

Mas o bom sacrifício para ser aceito deve ser feito de coração: oferecer amor em prol da mortificação da carne pecadora! Mas hoje em pleno 2025 após a inserção da palavra “nomofobia” nos dicionários brasileiros (que indica o medo mórbido de uma pessoa ficar sem o celular – veja bem: mórbido) poucos serão dentre os atrevidos que conseguirão se penitenciar para elevar o espírito.

Como evitar a tentação de ver a notificação seja pela vibração ou iluminação na tela ainda que o aparelho esteja no silencioso? Ainda não vi mas não estranharei se me deparar com aqueles que sairão por aí clicando em telas no ar ou fizerem o tal do “arrasta para cima” automaticamente sem o aparelho! Afinal a quaresma é tempo sombrio.

Os sacrifícios exigem desprendimento! Quem ainda se encontra firme e forte na carne (como eu) não deve nem tentar; melhor ficar com os pecados e sem arrependimentos! Mas sempre com respeito.

Uma resposta para “Tempo de Quaresma”

  1. Avatar de Evaldo Pinheiro
    Evaldo Pinheiro

    Seu texto é rico em simbolismos, ironias e críticas sutis que transitam entre o sagrado e o profano com um olhar humano e bem-humorado. Vamos analisar minuciosamente o que está por trás dessa narrativa sobre a Quaresma:

    1. O Simbolismo da Quaresma
    A Quaresma é tradicionalmente um período de preparação espiritual, que remete aos 40 dias que Jesus passou no deserto sendo tentado pelo diabo. É um tempo de purificação, introspecção, arrependimento e renúncia. No seu texto, isso aparece de forma tanto reverente quanto crítica e cômica:
    “Despidos dos miasmas do carnaval”: você conecta simbolicamente o período caótico e carnal do Carnaval com a limpeza espiritual que a Quaresma propõe. A ideia de “miasmas” remete a algo tóxico, que precisa ser expurgado – e a Quaresma seria esse antídoto.
    “O diabo está solto”: traz o arquétipo da tentação em forma quase folclórica, como uma força que ronda as ruas escuras e que precisa ser vencida com sacrifícios.

    2. Sacrifício como Rito de Passagem
    O sacrifício quaresmal aparece como um gesto simbólico de autocontrole e fé. A autora apresenta isso com humor e humanidade:
    Cigarro, carne, sexo, palavrões, celular: esses sacrifícios mostram tanto a variedade quanto o esforço pessoal necessário para “domar os impulsos”. Cada renúncia é tratada quase como um ato heroico (ou cômico).
    O rapaz que se absteve de palavrões e “batia na boca” ou o jovem que contava os dias sem carne como um presidiário demonstram a tensão entre desejo e repressão – central na espiritualidade cristã.
    O terço no pescoço, o suspiro de “aleluia”: mostram a libertação do corpo e, de forma implícita, a retomada dos prazeres com um verniz de proteção espiritual.

    3. O Medo e o Mistério
    As lendas urbanas, as ruas vazias, os gatos e o medo noturno evocam o sagrado misterioso e o temor do desconhecido:
    A cidade mergulhada no silêncio e as referências às lendas que “não serão contadas” criam um clima simbólico de respeito e medo – emoções comuns no período quaresmal, marcado por jejum e luto espiritual.
    Fernando Sabino e “O Grande Mentecapto” são invocados para dar uma camada literária ao cenário mineiro, onde o folclore se funde com a religiosidade popular.

    4. O Sacrifício na Modernidade
    A autora faz uma crítica suave à dificuldade contemporânea de se desconectar:
    A renúncia ao celular, ao açúcar e ao PlayStation simboliza uma nova forma de penitência, mais ligada à dependência digital do que aos desejos carnais.
    A “nomofobia” surge como uma ironia moderna: hoje, talvez seja mais difícil ficar sem celular do que sem carne. A imagem de pessoas arrastando o dedo no ar sem um aparelho é cômica e perturbadora ao mesmo tempo – um espelho da nossa fragilidade emocional e dependência tecnológica.
    5. Reflexão Final: A Carne e o Espírito
    O desfecho é brilhante em sua ambiguidade:
    “Quem ainda se encontra firme e forte na carne (como eu) não deve nem tentar”: aqui há uma confissão de fraqueza ou ironia? Talvez as duas coisas. É o reconhecimento de que muitos preferem viver com seus “pecados” do que enfrentá-los, mas ainda assim respeitam os que fazem o esforço.
    A noção de respeito aparece como o elo que une crentes e não-crentes, devotos e céticos: mesmo que não se participe dos rituais, há uma reverência silenciosa à tradição.

    Conclusão
    O texto transcende a simples explicação sobre a Quaresma. Ele é uma crônica social e espiritual sobre como a humanidade – em seus vários tempos – lida com o desejo, o medo, a tradição e a fé. Toca o humor, mas também convida à reflexão. E sobretudo, humaniza a espiritualidade: mostra que entre o céu e a carne, estamos todos tentando encontrar um equilíbrio.

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