Renda extra

São sete e meia de uma manhã de segunda-feira, normal e pré-quente. Queiroz não costuma conferir os graus centígrados. Para ele, chover ou fazer sol, conforme notifica o seu celular no alto da tela, basta. Mas ele não esconde de ninguém (nem se intimida, coisa rara em sua personalidade) que prefere a chuva. Ela ameniza o calor, o uniforme todo preto ganha caimento (camisa preta de poliéster com gola redonda alta, calça preta tática e coturno) e o plantão é mais calmo (não há banho de sol para os detentos).

Não é o caso de hoje; respira fundo. Não há escolha, é parte da rotina. Ele se apresenta na portaria e depois ocupará o posto designado do dia. Queiroz pega o grosso livro de ponto, folheia até alcançar a última assinatura para inserir a sua abaixo, acompanhada do horário de entrada. Faz isso sem pressa. Exala o ar baixinho, pois sabe que o plantão será quente.

Recostado em um balcão rude e encardido, lança um breve olhar sobre as câmeras de segurança e depois para o televisor que exibe o noticiário. Está atualizado. São poucos minutos necessários para ter um panorama sobre como estão as coisas. Aproveita o instante de tranquilidade, que não se deve acostumar, já que o aparente sossego pode mascarar a mais estrondosa das artimanhas dos internos. Ajeita o coldre e mais a fiel Glock (com um pequeno descascado perto do cano que, segundo ele, tem uma história para contar, mas guarda para si).

A mesma paisagem vista da rua pode ser observada na portaria. A diferença é o ângulo. Pela perspectiva aguda, vê-se à direita o pátio de entrada, onde estacionam-se os carros das autoridades; à esquerda, a janela da administração e, se o ouvido estiver bem apurado, consegue-se captar conversas. São muitas. Na perspectiva obtusa, o que à esquerda revela é em detrimento da direita: vê-se o quanto aquele velho edifício prisional se estende ao fundo ocultando todas as mazelas humanas…

Os pensamentos de Queiroz são interrompidos com o surgimento de três homens nesta parte. Caminham devagar, mas com precisão. Ele reconheceu rapidamente dois colegas e um preso — este no meio — que seria libertado.

A saída não é breve. Mais do que a abertura de algemas e do portão existem questões protocolares, incluindo um breve questionário e entrega de uma espécie de alvará de soltura. A entrada e saída é um inusitado à parte.

Quando se aproximam, Queiroz reconhece o tipo de preso que aquele homem jovem, magro e abatido representava: o tipo comum. Qual fora o crime? Não sabia. E nem era muito de procurar saber; às vezes era melhor ignorar. Outro colega, Diógenes, fazia diferente: procurava saber e se fosse algo que lhe desagradasse procurava prejudicar o detento. E várias foram as vezes em que deu belos solapapos, socos e chutes. E isso uma hora iria colocá-lo em apuros. Se os Direitos Humanos ficassem sabendo…

Mas ali estavam Antunes e Cláudio, seus colegas, indiferentes a essas questões. O primeiro era refém do dinheiro; só pensava em ganhar e ostentar — ostensivamente. E o segundo… Era simplesmente o segundo em qualquer circunstância, setor ou plantão. Eles começaram o procedimento padrão com certa impaciência e comichão para acabar logo.

Enquanto Cláudio mantinha os olhos de águia sobre o preso, Antunes começou a fazer as perguntas protocolares:
– Qual a sua data de nascimento?
– Hum? Sei não, senhor – respondeu o preso cabisbaixo.
– Sabe sim! Qual é o seu aniversário? – insistiu bufando Antunes.
– É sete de agosto, senhor.
– E qual a sua religião?
– Hum? O que, senhor? – devolveu a pergunta com voz trêmula.
– Sua religião… É cristão? – Antunes retornou à impaciência.
– Não; sou pagodeiro, senhor.

Para Antunes bastava isso. Queiroz olhou de soslaio e riu por dentro. Foi só o primeiro ver o segundo para se lembrar do AVA.

Abram-se parênteses. As Atividades Vagas Abertas, ou simplesmente AVA, são um mecanismo utilizado dentro do sistema de segurança pública que remunera o servidor que trabalha voluntariamente em um plantão de 12 horas. Este “extra” só pode ser feito em dia de folga ou fora da escala de trabalho e deve ser pleiteado dentro de um software conectado à internet. Como numa competição, ganha a vaga quem agendar primeiro. E, como vale uma renda a mais, a disputa é acirrada. Ao que parece, pode-se fazer até 10 AVAs por mês, o que pode gerar, em média, R$ 4 mil a mais (dependendo do tempo de trabalho ou nível). Fecham-se parênteses.

Queiroz, ao contrário de Antunes, tem sido agraciado nos últimos meses com vários AVAs. Internet veloz e marcação mais rápida. Aqueles que mal conseguem ou não conseguem nenhum ficam ressentidos com os “agraciados”, como se estes fossem culpados por não deixarem sobrar.

Neste clima de hostilidade abafada, Antunes aproveitou o espaço que, além dos três, contava com mais quatro colegas e dois dos três cachorros e soltou:

– É… Está difícil, cada vez mais difícil conseguir uns AVAs. Se o colega não tiver um por fora, está lascado.

Todos permaneceram em silêncio. Antunes continuou como quem refletisse imponente:

– Eu tenho uma renda extra.

Silêncio mantido. Antunes, tomado de comichão, pois ninguém perguntava, aguardou uns segundos e insistiu:

– Eu tenho uma renda extra.

O silêncio se manteve com sucesso. Como ninguém queria saber? Era importante e no mínimo todos deveriam ficar curiosos; quiçá maravilhados ou com inveja (por que não?). Antunes não se aguentou e decidiu responder ao que ninguém lhe questionara:

– A minha renda é o tigrinho; ele me salva!

Daquela plateia não houve sequer uma troca de olhares. Nem os cachorros moveram uma pata. O silêncio foi sepulcral. Logo pela manhã.

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