Quando vi aquele pasto à minha frente, contemplei-o. Há quem prefira o mar; são particularidades, necessidades internas difíceis de explicar, mas simples ao sentir. Todo e qualquer pasto, principalmente se tiver um morro, rouba minha atenção. Sempre foi assim. Nunca soube o porquê. Talvez agora seja propício investigar.
Os pastos de Celina são os meus prediletos. Há toda uma romantização do passado que enamora meu coração em discrição, para que ninguém perceba, pois amor secreto é bom para namorar. É gostosinho. O pasto que agora vejo é um que fica em frente à rodoviária. Estou novamente em São José do Calçado e aqui permaneço por duas horas, pois aguardo um ônibus para Alegre.
Olho aquele pasto e percorro cada parte para apreender seus detalhes. Tracejo suas linhas e curvaturas; são belas porque são imprecisas. Tenho a impressão de que ora se agiganta, ora se achata. Se não houvesse os imóveis entre nós, se só existisse a rua para nos ligar, compreenderia melhor qualquer ilusão de óptica.
Acho que no seu alto há um discreto cruzeiro. Digo “acho” porque é cedo e estou sonolenta. Por precaução, contemplo com respeito. Mas considero importante que todo morro de pasto tenha um cruzeiro; é o lembrete de que acima de nossas cabeças há sempre algo maior.
Quando era criança, bem pequenina, olhava a cruz da igreja de Celina, apontava e dizia: “A lá o Senhor!”. Talvez isso explique minha posição. Sei que qualquer insistência nas minhas memórias é um reforço romântico para manter vívido o que um dia aconteceu, por mais simples e banal que seja, lutando por sua permanência diante de qualquer presente diverso e futuro duvidoso.
Me perco novamente nos contornos imprecisos do morro, do pasto, do cruzeiro. Quando desço o olhar, percebo um homem parado. Ele está entre nós. É um homem que aparenta ter uns 55 anos. Veste uma camisa polo listrada, um bermudão, chinelo, boné e óculos. Tudo simples. Seria apenas mais um cidadão comum se não se assemelhasse ao meu tio falecido Sebastião, o mesmo que morava perto da igreja de Celina.
Aquele homem à minha frente não era uma miragem; era um homem de verdade, de carne e osso — isto é, mais carne do que osso. Tenho a impressão de que em alguns momentos ele me olhava, embora se atente mais à rua à minha direita e seu movimento. Quando percebo que não olha diretamente para mim, observo-o melhor. E das primeiras semelhanças, procuro por outras. Parece uma necessidade de afirmação ou constatação (talvez isso seja o mais adequado).
Entre a busca e o encontro de semelhanças há um elo de incertezas. O homem começa a andar e vem ao meu encontro. Não. Ele seguirá reto pela rua à minha direita. Ele é sério, calmo e severo. Outros diriam atento, mas o certo é severo.
Caminha devagar. Pressa é desnecessária na tranquilidade matutina do interior. Ao se aproximar, percebo que seu enorme nariz de batata em nada se parece com o do meu tio, que era afilado — ao menos é isso que lembro ou embelezo.
A altura e largura são semelhantes; acho que o andar também. E a voz? Inútil. Nada disse, nem com aceno de cabeça. E mesmo se dissesse, como eu saberia com estes ouvidos de enfeite? Bibelô. Meu tio tinha a voz metálica, de alumínio, daqueles que aparavam chuva em canto de parede. E mesmo que estivesse aqui, leria seus lábios com dificuldade, já que falava com pouca articulação e todas as palavras lhe escapuliam da boca como vento leve de fim de tarde.
Mas agora é de manhã e… gozado: senti uma leve brisa passar por mim quando aquele homem acabara de passar seguindo a rua à minha direita, me olhando mais uma vez, quieto e severo. Também me mantenho quieta; é meu normal que se acentua com o passar do tempo. Afinal, o mundo é cada vez mais barulhento e quando percebo isso, me emudeço. Mas essa manhã é calma. E eu procuro meus referenciais. Faço minha geolocalização a cada contorno e presença: rodoviária, morro, homem e lembranças.
Aquele homem que seguia a rua calmamente estava vivo. Meu tio se foi há quatro anos. Estou em Calçado mais uma vez. Não sei o que o homem viu em mim; como também ele não sabe o que vi nele. Estamos quites. Quem poderia dizer algo sobre nós seria o morro ou o cruzeiro; mas nem o pasto faz isso porque, como natureza, nada diz, envia sinais. Interpretá-los exige esforço. E meu ônibus encostará daqui a dez minutos.
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