Eu fui uma criança medrosa

Encontrei ontem meu vizinho Plínio. Agora maior, pouco fala. Está em uma nova fase do desenvolvimento humano. Se, quando pequeno, era um garoto curioso e cheio de energia, agora é um menino arredio, tenso e sem brilho. Ele não tem culpa. Tornou-se uma vítima do próprio pai, que nele projetou todo o medo. Temo que o garoto se torne igualmente covarde. Fato é que muitos pais projetam seus próprios medos nos filhos.

Como ontem, tornou-se comum que, ao encontrar Plínio, mal se consegue dar um “oi”, pois ele responde com os olhos arregalados e sai correndo, olhando para o chão. Viver exige atos de coragem.

Enquanto apiedava-me dele comecei a pensar sobre os meus próprios medos, os quais são os mais ridículos. Penso que quando se chega ao ponto de considerar algum medo como bobo, ridículo é porque estamos próximos do ponto de saturação, uma vez que a inquietação que é provocada não oferece mais nenhuma zona de conforto de outrora. Pelo contrário, faz surgir uma irritação, que logo dá passagem para a vergonha. As vezes esse processo se sucede de modo inverso…

A bem da verdade fui uma criança medrosa… E curiosa! Sempre um dos dois norteava minhas ações pueris. Por mais que buscasse entender o mundo que se desenhava a minha volta estava sempre atenta as conversas dos adultos. Como era quieta facilmente eles se esqueciam de mim. E eu conseguia ouvir cada coisa…

Tinha lá meus 9 anos. Junto com os meus pais fomos morar como caseiros em uma mansão de frente para o mar. Entre tantas tarefas rotineiras era imperativo abrir todo dia aquele casarão pela manhã e depois fechar ao final da tarde, preferencialmente antes que os pernilongos entrassem… Mas eles não me preocupavam. Meu temor era outro. No quarto dos patrões havia uma bela varanda envidraçada com uma vasta vista marítima (poder-se-ia contemplar duas praias e mais uma reserva ambiental).

Assim como a casa, todo o terreno ficava sobre as pedras, as quais intermediavam entre a água salgada e a restinga. De qualquer modo, qualquer olhar facilmente se perdia em toda aquela imensidão do mar… O meu não! É que se o mar se apresentava robusto pela vidraça, do lado contrário, estava fixado um quadro em madeira escura talhada o busto de um preto velho em alto relevo. E independente de qualquer direção que pudesse ir, percebia imediatamente que o olhar daquela imagem me seguia.

Passei a perceber esses detalhes após ouvir de uma visita – que conversava com a minha mãe e que bem antes de nós havia morado ali por muitos anos – que os patrões eram ricos, ou melhor, haviam se tornado ricos porque “eram da magia negra”. Era como se o fato de ser pobre fosse bom e que indiciava uma futura e promissora salvação, enquanto aos ricos cabia-lhes a danação eterna; embora pudessem antes gozar em vida de todas as alegrias e caprichos mundanos…

De conjecturas às malícias esse tipo de assunto quando iniciado dificilmente cessa logo. E, como era de se esperar, não demorou muito a falarem sobre rituais de sacrifício com crianças inocentes e outras coisas do gênero. E, o pior, associaram o tal quadro do preto velho como o “sinal visível” da religião deles. Eu, pequena e medrosa, uma criança facilmente impressionável, fui tomada de um pavor que não sei até hoje, como consegui disfarçar. O problema é que entre o disfarce e as armadilhas impostas pelo medo, minha mãe me mandava frequentemente “ir fechar as janelas do quarto do patrão”. De início – como uma boa Suete – quis argumentar alguma troca por outro cômodo, mas minha mãe – como boa matriarca Suete – impaciente como ela só, não gostava de “esticar a conversa”, já que queria terminar logo e “ficar livre” para poder assim assistir a novela das seis e das sete com tranquilidade, esta que naturalmente seria alcançada por meio de algum sacrifício: o meu, o de enfrentar o medo. E foram sucessivas vezes.

Porém, de início, criei meu Modus Operandi. Assim que adentrava o quarto dos patrões, acendia as luzes. Fechava tudo que se encontrasse aberto para depois, de penúltimo, ir à varanda e fechar as janelas. Sem olhar para o quadro, saia correndo e fechava rapidamente a porta que separava a varanda do quarto para, em seguida, desligar as luzes e sair correndo pelo corredor e só parar quando já estivesse no jardim.

Meu plano funcionou bem, mas lá pela quinta ou sexta vez, toda a previsibilidade da certeza sofreu o seu revés. Não é agradável ser encarada, ainda mais pelas costas… Lembro-me que em uma dessas oportunidades, adentrei a varanda no mesmo passo e ritmo de outrora. Entretanto, havia mais quietude que o habitual. Senti. Apressei-me, porque o medo assim exige. E assim, em um ato puramente irracional olhei para o quadro, enquanto tentava firmar minhas pequenas mãos no trinco e forçar a janela deslizar até o seu fechamento completo. Era simples, mas travou. Como não havia olhado, exerci alguma força exagerada que a fez emperrar. Bastava retrocedê-la um pouco e empurrá-la devagar para que o fechamento se concluísse em míseros segundos. Mas como o medo encobre a racionalidade demorei alguns minutos forçando a janela para fora e para dentro. Por sorte, talvez, consegui fechar após ter levado o meu dedo ao sacrifício: acabei batendo-o entre a porta e o seu marco. Tanto azar quanto dor.

Segurei o grito com medo de que minha mãe ouvisse, não foi difícil, uma vez que estava envolvida pelo olhar do quadro. Era impressionante como os olhos daquela imagem pareciam atravessar o meu corpo. Eu estava inerte e acreditei que havia algum sorriso dominador dele sobre mim. Mas não passava de uma alucinação. O medo, como sempre, projeta cenários. E como estava ali semelhante a uma coadjuvante saí.

Fato é que abri e fechei aquela janela várias vezes por aproximadamente dois anos. E, sem perceber, acostumei com o quadro, embora ainda mantivesse em mim uma dúvida: Como era possível aquela figura simbolizar o mal em toda a sua força? Não tive a resposta de imediato. Passaram-se alguns anos. Demorei muito tempo para descobrir que aquela imagem nada tinha a ver com o mal, pelo contrário, era a expressão genuína da humildade e sabedoria que constatei assim que passei a contemplá-la. Há quem ao passar pelo quadro faz algum tipo de reverência ou alguma saudação. Quando encontro algum respeitosamente olho e dou um sorriso. O medo dissipou. Ainda sou menina.

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