Ela subiu o morro. Era a sua primeira vez. O território lhe era desconhecido. Aos nativos, não. Quando nenhum táxi ou mesmo Uber faz a “corrida” deve-se desconfiar. Ainda sim ela insistiu. Para piorar estava toda produzida, da cabeça aos pés, denunciando ao longe que era turista. Eu também, de longe, através do meu celular, li toda a legenda de sua foto feliz. Era latente a sua imprudência misturada com ingenuidade. Fiquei pasma e aflita.
Eu a conheço há muito tempo, mas há poucos meses a vejo somente pelas redes sociais. O tempo não lhe apagou a inocência. Se fosse possível traduzir em traços físicos teria uma ruga aprofundada entre os olhos e as bochechas, daquelas que nem se ficasse séria conseguiria disfarçar. Ela é balzaquiana.
O Morro que ela subiu é alto, a altura exata de todo o perigo que abriga. Ela não sabe. Mas deveria presumir. Nunca se deve entrar aonde não se foi convidada, é uma breve lição de bom senso. Ela não recebeu nenhum convite para subir o morro. Intrometida, foi de penetra. Mesmo que o único carro que decidiu levá-la alertasse dos perigos, não se importou. Passava-se das 23 horas. Insana.
Por algum motivo que só o seu íntimo resguarda ela quis ir no alto, no cume alto. No caminho zigue-zagueou pelas ruelas estreitas, que só elas velam segredos e verticalizou toda sua vontade no que chama de coragem. Quando pronuncia, o “m” quase não sai. Culpa do sotaque. É mineira de nascença. Corage…
Ela ainda disse que era impossível descrever toda a experiência porque ali não caberia. E mesmo que coubesse não era necessário. Dava para presumir. Embora quisesse enfatizar que era “uma mulher decidida”, daquelas que “quando colocam algo na cabeça ninguém tira” evidenciava-se várias possibilidades de perigosa teimosia. Mulheres decididas sempre são mais perigosas, seja para o bem, seja para o mal.
E a sua decisão fez alcançar o topo a meia-noite. O motorista já havia descido. Tinha a sua grana garantida. Poderia ir direto para casa ou buscar novas corridas. A cidade se movimentava, em qualquer canto, direção, altura e densidade…
Meia-noite. E ela, no topo do Morro. Estava satisfeita por ter chegado lá. Olhava tudo o que dava para ser visto na pouca luminosidade existente. Distraiu-se. Culpa do próprio vento que por ela circundava e jogava os seus cabelos longos para a frente do rosto dificultando qualquer observação. Em algum momento ela relata que havia um grupo de crianças brincando por ali. Logo lembrei de quando alguém (que não me lembro exatamente quem) me disse: “Ananda, Deus se manifesta de diferentes formas para a gente. E é para nos testar ou proteger, em forma de animais ou de crianças”. Pensei nessas crianças do morro como a manifestação divina. Quando ela disse que os pequenos a levaram até algum lugar na base do morro para pegar um táxi ou Uber de volta senti essas crianças como a fagulha de Deus, cada um detinha um pouco Dele. Graças a Deus ela conseguiu voltar para onde estava hospedada, sã e salva.
Ao final, bem no final ela relata que pretende voltar ao Morro, ao alto do Morro. Misericórdia Deus! Ela não sabe os perigos aos quais se submete. Dormi pensando nisso tudo. Pensei que a inocência só é bela e admirável nas crianças, nos adultos não. É perigoso.
Quando de manhã, acesso o jornal para ler as notícias deparo-me com uma manchete de capa, cujo destaque é “uma mulher sofreu importunação dentro de um carro durante uma corrida quando retornava para casa de madrugada”. Tive um sobressalto. Por um instante pensei que tinha acontecido com ela… Não era.
Tratava-se de um caso desconhecido. Uma jovem havia saído do trabalho naquela madrugada e pediu uma corrida “por aplicativo”. Sentou-se no banco do carona. E em algum momento o motorista desviou a rota do destino e ficou rodando, rodando com ela pela cidade. Até que passou a mão em sua perna e a convidou a ir para a casa dele. Ela sentiu medo. Avisou a mãe, por mensagem, que a esperasse na porta de casa. E por sorte conseguiu fazer com que ele a levasse para o seu destino correto. Quando lá chegou foi surpreendido por várias pessoas revoltadas que queriam “dar uma lição no homem”. A mãe, desesperada, havia pedido ajuda aos vizinhos. E claro, a polícia apareceu no final. A jovem continuava assustada e receosa de fazer novas corridas “por aplicativos”.
A inocência não a resguardou. E ela não sabia que não se deve sentar no banco da frente, pois este é um código que tanto motoristas de táxi, como de aplicativos entendem que “se pode avançar o sinal”, que “a passageira está disposta a qualquer investida”. É a linguagem da rua. Talvez não fosse somente inocente e estivesse muito cansada. Pois bem, o cansaço assim como a inocência fere qualquer percepção de realidade. O perigo sempre está a espreita. O morro, as ruas e até mesmo a beira-mar desconhecem a inocência. Há sempre alguma brisa cortante que equaliza silêncios perturbados pelas inconstantes acelerações e frenagens de carros. Por Deus, ambas tiveram sorte, dessa vez.
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