O gato e a conquista pelo olhar

Estou chateada. Amanheci chateada. Alimento um casal de gatos de rua. Minto. Não é um casal trata-se de pai e filha. Ele é um vistoso gato preto de mato. Detentor de um andar majestoso, ora preguiçoso, que faz qualquer supersticioso se benzer por três vezes caso o venha encontrar. Tenho lá minhas superstições, mas não o temo. Confesso que nutro certo fascínio por aqueles olhos cor de mel.

O gato preto tem nome? Não. Recebeu por mim um pobre apelido: Pretão. Ele aceitou e sempre respondeu ao meu chamado com aquela peculiar serenidade felina. Arrisco descrevê-lo como um notável ser de charme misterioso, ou seria certo, mais preciso dizer “de misterioso charme”? Não importa o ângulo, Pretão é Pretão. Pretão é felino notável.

Aquele gato de pêlo grosso e arisco por excelência ensinou-me, dentre tantas coisas, que a conquista é diária; e começa pelo olhar. Nos nossos primeiros contatos atrevia-me a encará-lo (coisa que não recomendo, pois que é perigoso) e, aos poucos, sem perceber, ele devolvia-me a encarada com um convite “desafia-me, mas considere as consequências”. Era a verdadeira esfinge grega que se postava a minha frente com beleza, frieza e silêncio. Como todos os encontros eram noturnos, tudo era mais intenso, notório e sombrio. E eu gosto disso!

Todas as noites, secas ou chuvosas, quentes ou frias, pai e filha felinos surgiam e se prostravam silenciosamente aos pés da minha janela. Fixamente miravam. Inevitavelmente percebia que estava sendo observada. Logo prontificava-me a preparar a ração e a comida, descer e servi-los.

Como é comum, a filha, uma gata de pelagem escaminha, é dócil; e entre umas abocanhadas e outras, sempre vem se esfregar nas minhas pernas. Mas Pretão não. Sisudo. Prefere comer quieto e afastado. Certa noite inventei de querer devolver os grãos de ração caídos em torno do comedouro para junto aos demais no pote. Péssima ideia. Pretão não viu com bons olhos minha atitude e me desferiu um forte tapa que, ao acertar minha mão, abriu um corte no meu polegar. Sangrou e ardeu por vários dias. Minha reação imediata foi reclamar. Apelei para uma dramatização canceriana. Demonstrei o quanto estava sentida com aquele gesto bruto por parte dele, que só queria ajudar e recebi aquele tapa e tal.

Pretão serenamente ouvia, acompanhava meus gestos e, de vez em quando, discretamente me olhava. Aquele tapa foi o primeiro e o último, pois todas as vezes que colocaria a ração ou mesmo devolveria os grãos caídos ao comedouro, ele parava. Assim que eu terminava, ele aguardava breves segundos para me olhar. Era o pedido que me afastasse para que pudesse comer sossegadamente. Dava um passo para trás e ficava a observá-lo silenciosamente. Todas as noites eram assim. Silêncio e respeito.

Toda calmaria (quando perdura) é por pouco tempo. Curto. Logo apareceu um terceiro gato, desses de pelagem frajolinha. Chegou macio e disposto a comer. E se pôs a comer. Gatuno. Com o alongamento semelhante a uma bailarina clássica metia a pata no comedouro e puxava tudo para si. Pouco importava quem estivesse comendo, o mais próximo era sempre a sua vítima predileta. Em alguns momentos – que viriam a se repetir com certa frequência – Pretão reagia. E quando isso acontecia, o dito “frajolinha” se esquivava, segurava a respiração e esperava abrandar o momento. Observava todos aqueles meandros do que julgava como “coisas de gatos”. E só.

Várias noites se sucederam e pude perceber que o tal “frajolinha” não estava ali somente e puramente por causa da ração, mas sim por causa da gata. O gatuno estava apaixonado. Será que como gatuno por si só almejava surrupiar o coração dela? A ração era um pretexto. E a felina – considerada musa por sua pelagem, bem como atrevida – sabia disso. Fazia o “jogo da difícil”, ignorava-o e até por várias vezes dava uns tapas bem dados no meio da cara dele. Eu vi.

Mas, sabe, após tanto contato e observação arrisco dizer que não era um mero jogo, e sim tédio de tanta importunação. “Frajolinha” é um gato chato, persistente. Quanto mais ignorado, mais chato, grudado ele se torna. Toda fêmea sabe disso, de qualquer espécie, inclusive a humana. Arrisco ainda em cometer um deslize aqui. Por mais chato que o macho possa ser, se algum dia ele se afastar ou mesmo ir embora, a fêmea sentirá saudade. Precisamos disso para alimentar nosso ego, a nossa vaidade feminina.

Mesmo que tenha revelado um segredo da minha espécie continuo chateada. É que no decorrer de todos esses encontros felinos noturnos, não demorou muito a aparecer um outro gato, de mesmo tamanho e largura que o Pretão, porém cinza e branco.

“Frajolinha” era bem amistoso com o novo visitante, enquanto Pretão observava de soslaio e com certo receio. Bom, não posso deixar de mencionar que tanto Pretão, quanto o “Novato” ainda exalavam o puro vigor masculino, enquanto o “Frajolinha” é castrado.

Na noite seguinte, o novato começou a “marcar território” em todo o entorno. Estratégia de cerceamento. Eficaz. Pretão sentiu e desapareceu. As noites decorrentes foram marcadas pela presença constante do “Frajolinha”, à distância e soberanamente do “Novato” e a “Escaminha” fartando-se na deliciosa ração premium.

De vez em quando voltamos nossos olhares para o final da longínqua e penumbrosa rua a espera do surgimento de Pretão. Ela, charmosa e tediosa; eu, chateada e esperançosa. E ele, será que um dia voltará?

Uma resposta para “O gato e a conquista pelo olhar”

  1. Avatar de Adelir
    Adelir

    Muito bom seu blog… texto ótimo 🥰🥰

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