Certa vez, ao passar de ônibus por Niterói (e isso tem tempo), vi uma pichação em um muro envelhecido, próprio de galpões de ferro-velho ou, quem sabe, oficinas desleixadas. A tinta negra denunciava “tem gente que é tão pobre que só tem dinheiro”. Curioso e engraçado.
Retornava da capital carioca e como dispunha de várias horas pela BR-101 contaria com tempo mais que suficiente para refletir sobre a frase.
Não conheço Niterói, mas me recordo bem que o local fica em uma avenida principal. Sei que isso não ajuda, mas acredito que qualquer nativo ou desbravador da cidade conseguirá identificar.
Era uma tarde preguiçosa, dessas em que ao estar só não se sofre de solidão, pois se sente paz. O encontro consigo mesmo.
Para mim que nasci desprovida de grana, acostumada com ambientes minimalistas (de mínimo mesmo), dinheiro e riqueza eram verdadeiras utopias.
Ainda pequena, em uma vez dessas que não se lembra a data e nem o porquê, minha mãe me disse “Seu pai e eu lutamos até aqui e não conseguimos, cabe a você a tarefa. Estude muito, esse é o único jeito!”. Calada tomei como missão. É fato que sempre nutri a paixão pelos estudos. A chama se mantém viva. E hoje se tivesse grana pegaria uma parte e desbravaria diversas partes do Brasil. Por enquanto, minhas crônicas vão por mim.
Quanto mais me distanciava de Niterói, mais me aproximava de certas lembranças. Destino mental.
Uma delas foi quando comecei a estudar guitarra. Tomei por emprestada uma Golden alvinegra da escola de música. Por ela tive apreço e apego. E isso nada tem a ver com fato de torcer no Rio, pelo Botafogo, e no Espírito Santo, pelo Rio Branco.
Em uma aula vespertina qualquer, o professor resolveu colocar uma outra aluna para tocarmos juntas, enquanto ele ditaria o ritmo na bateria. Não lembro o nome dela, era muito simpática e, na mesma medida, superficial.
Enquanto ligava a distorção da Golden, ela retirou da capa uma reluzente Gibson Les Paul preta com detalhes vermelhos. Fiquei impactada, pois era a primeira vez (e até agora única) que vi de perto a guitarra dos meus sonhos.
Também não lembro qual foi a música que tocamos. Cabia a mim fazer o solo e a ela a base. Não consegui e me frustrei. Pior foi para ela, que além de não tocar minimamente direito conseguiu a incrível façanha de deixar a palheta voar, a qual foi cair por detrás dos equipamentos pesados. Um local escuro, empoeirado de difícil acesso, que desanima qualquer faxineira. Gibson Les Paul…
Das lembranças acerca da riqueza e da pobreza há uma que me agrada. Quando criança havia um casal de vizinhos, daqueles que nutrimos imediato respeito, devido ao bom caráter, o qual se percebia de longe. Falarei da mulher. Não digo que não me recordo o seu nome, pois que nunca soube. Fato é que ela me causou fortes impressões que me fazem lembrar dela com nitidez de meio-dia ensolarado.
Certa vez, junto com os meus pais, passamos em frente a casa dela e, por sorte, ela estava sentada à calçada. Suas roupas eram simples, por ora respeitáveis. Trajava uma blusa branca de algodão com mangas curtas, uma saia longa marrom e uma sandália rasteirinha preta com fechamento nos calcanhares. De pernas cruzadas e com os braços idem apoiados sobre o joelho me passava visualmente a ideia de harmonia, palavra que naquele tempo ainda me era desconhecida.
Com boa dicção, sua voz era precisa e ao mesmo tempo suave. Negra de cabelos idem, os quais eram curtos em um corte arredondado comum as mulheres pobres, em especial na década de 1990, e que lhe conferia maior destaque ao rosto ovalado. De alguma forma eu percebia nela uma beleza superior ao que se via. Não sabia o porquê. Ela falava com serenidade e ouvia atentamente. Ora se dirigia ao meu pai, ora a minha mãe e, por fim, a mim, a qual se referia como “minha jovem”. Não esbocei muitas reações, e nem sabia qual seria a mais apropriada. Hoje digo seguramente que estava intrigada com tamanha beleza em uma única mulher, negra e pobre. Após ler diversos clássicos da nossa rica literatura brasileira descobri a palavra correta: elegância. Uma palavra que por si só denota beleza.
Nunca mais a vi após aquela tarde e asseguro dizer que aquele foi o dia que descobri a elegância, e após tal experiência sou categórica em afirmar que, seja habilidade ou virtude, para tê-la é preciso nascer. Não se adquire fácil, não se compra porque é invendável. Aquela mulher nasceu e muitos espiritualistas poderiam dizer que “é um resquício de alguma vida passada”. Não sei. Isso é grande demais para compreender.
“Tem gente que é tão pobre que só tem dinheiro”. Quem pichou? A quem direcionava? Sentia ódio, sarcasmo ou tristeza? Não sei. Prefiro pensar nas coisas que o dinheiro não consegue comprar, no que é inestimável, inegociável e duradouro. Isso me traz esperança. Posso reclinar a poltrona e ficar mais confortável. Niterói, até a próxima!
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