Entre o asfalto e o sol escaldante somos gentes amontoadoras de carnes e suor. A insolação do verão deixa isso claro. Prolongou-se este ano, e o sol, em sua soberania eterna, antecipou o seu pino para às 10h30. Pergunto se isso não o faz uma persona non grata (solo non grato?). Transitar pelo centro, sobre o asfalto e sob a mira precisa dos raios celestes cortantes é tarefa que deve ser realizada somente por motivo de força maior (que faz qualquer ser esmorecer rapidamente, pode apostar).
Há pouca brisa, é o hálito quente do cão. Mulheres providas de sacolas e mais sacolas ou apenas com mãos inertes (fofas, de carnes trêmulas) dadas aos pequenos filhos distraídos oferecem justamente essas mesmas carnes maltratadas ao calor em roupas colantes, de pouco tecido, de péssima qualidade. Abaixam a cabeça para o sol. É a humildade imposta.
Em um estacionamento há um manobrista que, devido ao traje — chapéu de palha grande, calça jeans, tênis e camisa de manga longa — me faz imaginá-lo em um canavial. Mas quando se aproxima, com o seu olhar esguio acobertado pelo sombrero logo penso em Raiden, do Mortal Kombat.
Enquanto isso, do outro lado da rua, há um vendedor de água de coco. Essencial nesses dias. Colocou o seu carrinho em uma esquina à sombra. Homem de visão. Empreendedor. Tende a vender muito. Legítimo representante da máxima popular “sombra e água fresca”.
Estamos em julho, mas poderia ser janeiro. O sino da catedral não anuncia as horas, mas por meio do vapor quente se presume até os minutos com relativa aproximação: cinco minutos a mais, cinco minutos a menos. Margem de erro perdoável (e transpirável). Há sussurros, gemidos e lamentações de tanto calor que, Deus me perdoe, parece atrasar as horas. Tudo se arrasta. Tudo é incômodo. Em qualquer lugar de semelhante situação deseja-se somente três coisas: água, vento e silêncio. Deseja-se. O primeiro é permitido, o segundo é imprevisível, mas o terceiro…
Em meio a sussurros e gemidos do calorão, uma voz brada e sabe-se lá de onde. Vem num crescente como uma salvaguarda. O calor se intensifica. Não se raciocina.
A minha frente passa um casal desanimado. A mulher fala enquanto o homem é inerte diante da tela do celular. Entendo somente a palavra “Salomão”. Seria alguma pregação? A sensação térmica intensifica. Sede e cansaço há em todos, sem exceção. E a voz que brada em meio ao deserto de desalento aumenta. De onde vem? Por que grita tanto? Outros ignoram, e eu estou curiosa. Há um nervosismo naquela voz. É forte e trêmula.
Os minutos se sucedem, e o calor monárquico prevalece. Soprar a si é tarefa inútil. O manobrista insiste: “Direita”, “Esquerda”, “Entra de ré”, “Agora desfaz tudo”. Ninguém compra água de coco. Idosos com máscaras caminham lentamente porque estão sufocados. Homens caminham iguais a patos, com os pés para fora, com o intuito de arejarem as partes mais encobertas. Alguns parecem assados. O calor é impiedoso.
Mas a voz que brada se aproxima e berra tanta coisa… Só consigo entender “Maria está morta”, “só o sangue de Jesus… cura”. Não demora muito e logo o vejo. É um homem de tez forte, trajado como os tipos comuns dos anos 1970: camisa social com listras discretamente desbotadas, calça despojada. Não vi os seus sapatos. Há uma Bíblia (na certa suada) que sufoca as axilas e um megafone de péssima equalização. O homem transbordava em suor. Sua testa reluzia, enquanto sua voz falhava. Ele se esforçava cada vez mais como se toda a sua vida dependesse daquele gesto.
Ele vinha. Pisava aquele asfalto evaporante. Parecia não sentir. Quando se aproximou da catedral repetiu “Maria está morta!”. Destemido e desvairado em si, resolveu caminhar no meio da rua bradando. Quando algum carro buzinava ele pulava para a calçada e berrava “o sangue de Jesus… só ele cura”. Quanto mais falava, mais era ignorado por todos. Cada qual lutava com a própria impaciência que o ambiente incitava.
Já o esquecia quando o seu brado aumentou em volume. Vinha novamente a voz, o homem de tez brilhante, roupas setecentistas, Bíblia suada a tiracolo e o megafone. O sol castigava. E o homem bradava com mais força. O vendedor de água de coco resolveu abrir um para molhar a própria palavra, já que conversava tranquilo e intermitente. Aparentava uma rotina calma: conversar e vender. Este último, eventualmente.
“Só o sangue de Jesus tem poder, só ele cura”, vibrava o homem agora salivante. Quando viu a catedral, envergou o seu megafone, apertou o passo e vociferou “Maria está morta”. Um silêncio repentino se fez sentido, parecia que o tempo havia parado…
A cena retomou com vários e desencontrados murmúrios “Ixi…”, “Meu Deus do céu”, “Jesus, quê que foi isso?”. É que o homem havia sumido. Procurei-o. Instantaneamente formou-se um grupo de umas 5 ou 6 pessoas. Do carrinho de água de coco surgiu uma mulher esbaforida com um copo cheio de água como se portasse a tocha olímpica. No chão havia um corpo, trêmulo e atravessado, que se debatia como peixe lançado a margem de qualquer rio. Os sapatos nos pés eram as vítimas embaçadas pela poeira e pelo desgaste.
Imediatamente bradou-se um gemido alto. Era o tal homem, da tez forte, suado, e agora sujo. No intento contra a catedral se distraiu bem em frente ao estacionamento, onde um carro saiu apressado parando repentinamente a poucos centímetros dele. O manobrista, aquele, se assustou e só conseguiu gritar “Cuidado” e tapou os olhos com a aba do chapelão para não ver o impacto.
No susto, o homem pisou de mal jeito e ao cair bateu a cabeça no meio fio. Na queda, a Bíblia voou aterrissando acima da cabeça e o megafone permaneceu firme em uma de suas mãos. Quem estava perto observou que o homem permaneceu no chão em posição de crucificado, olhando para os lados. Sinistro. Mas ao contrário de Jesus que observava um dos ladrões no momento derradeiro, o homem via a catedral silenciosa em toda a sua suntuosidade. Ele desmaiou, sabe-se lá devido à pancada ou a insolação. Mas antes alguém o ouviu pronunciar num quase delírio “Sangue”, “Jesus”… “Maria”.
Como se poderia facilmente apurar, ele foi socorrido pela ambulância e levado ao hospital. Internado, aguardava por uma transfusão de sangue. Saiu no jornal da cidade. Coitado. Culpa do sol com sua punitiva insolação. Bem… eu acho. Talvez…
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