Resolvi pintar o meu apartamento. Trabalho o branco no teto. É um serviço pesado, embora disfarçado, mas é um daqueles que prefiro fazer sozinha. Há uma intimidade ali, uma busca por perfeição. Tenho há muito dessas coisas.
Amanhã terminarei o teto da sala-escritório. Hoje foi o segundo dia. Precisei parar devido à tontura. Coisas da labirintite, devido ao sobe e desce da escada, olhar para cima e para baixo. Sempre com um balanço lateral. Não importa o quão reto é o piso, balança-se para cá, balança-se para lá.
Sem esforço, resolvi deitar-me um pouco no sofá e contemplar o pouco que até então havia feito. Sinto-me orgulhosa. Não há falhas. E se houvesse logo veria. Tenho olhares ávidos para defeitos e detalhes.
Sinto que posso continuar amanhã do mesmo jeito que trabalhei hoje. Sentir-me-ei talentosa. Ainda, sim, gostaria de uma opinião exata. Rosaline demorará a chegar e os cachorros ocupam-se com os seus próprios sonos. Cosme, por exemplo, soluça em seus sonhos.
Resta-me sozinha pensar no processo que seguirei amanhã. Estico-me no sofá e olho um ponto qualquer no teto, no imenso espaço branco e recordo, sem perceber, de um pedreiro fanático que trabalhava eventualmente para o meu pai: era o Toninho gago. Não penso neste detalhe, penso no seu fanatismo religioso quando, em certa vez, eu criança metida a conversada, disse, somente para lhe provocar alguma reação, que “o deus dos muçulmanos é Alá”. Rápido respondeu “É o Diabo”. Ou fidedignamente “Di-a-bo-bo-bo”.
Distraio-me com outro ponto qualquer do teto. É uma pena que na próxima pintura, daqui a uns dois anos, precisarei ajeitar o gesso. É um tempo hábil que me permitirá pesquisar e, quiçá com alguma sorte, descobrir que poderei sozinha realizar tal empreitada. Com certeza, Rosaline gostará da ideia, embora possa desconfiar de minha tamanha ousadia. Mas, como sempre, com algum disfarce me dará crédito e, ao final, com o serviço realizado eficazmente, ficará satisfeita pelas notáveis vantagens que o modus punk “faça você mesmo” sempre proporciona: economia de mão-de-obra, manutenção da intimidade do lar e ausência de bagunça.
Percorro com o olhar o teto e desconfio que uma parte, uma pequena e sutil parte pede um pouco mais de tinta. Ainda não refeita da tontura arrisco tentar, subir e passar uma nova demão de tinta naquele trecho, trechinho. Ajo devagar. Pincelo. Retomo ao sofá e espreito a secagem para me convencer que “agora sim, ficou bom”.
A tarde se esvai como água serena numa bacia e qualquer trabalho minucioso com a tinta torna-se escorregadio, determino que a última demão ficará para amanhã.
O cansaço cobre todo o meu corpo no sofá. Quando acordo já é noite e Rosaline adentra a sala. Pergunta-me como foi o meu dia, resumo para sobrar tempo para os detalhes sobre a pintura. Peço que olhe e diga a sua opinião sincera. “É, parece que ficou bom. Deixa para amanhã cedo que vejo melhor”, diz ela olhando para o teto norteada pelo próprio queixo erguido em seu esforço para adjetivar meu trabalho.
Assim como tinta fresca que demora a secar, resta-me aguardar pelo amanhã de manhã. Ainda bem que não sofro de ansiedade, pois percebo agora que ficou uma pequenina parte sem tinta. O branco ludibria. Resolverei amanhã de manhã. Melhor.
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