Quando a manhã se faz silenciosa celebra-se a preguiça, tanto para quem acordou cedo como quem insistirá se levantar mais tarde. A Rua 12 era imperturbável, principalmente entre 6 e 7h30. Mas às 7h15 houve um grito, daqueles de susto. Quem pôs a cara para fora viu a Dona Maria tremendo com a vassoura em punho e os cabelos desgrenhados.
Varrendo a rua, de costume, não reparou e sentou a vassoura numa oferenda. Pior do que a distração dela foi o descuido de quem deixou aquilo ali, embaixo de um arbusto filhote, distante da esquina. Quem não se assusta, estranha.
Embora não seja comum encontrar oferendas na Rua 12 — é a segunda em 10 anos; a segunda em menos de um ano — nas outras ruas, próximas ou não, é mais frequente. Tem umas que são bem feitas, bonitas… Costuma-se vê-las nas viradas de segunda ou sexta. Mas a de hoje é em plena quarta-feira. Estranho.
A oferenda era pequena. Não apresentava muitos elementos, o que dificultava apostar para quem era, finalidade e entidade. Havia uma vela vermelha sobre a farofada e um charuto caído ao lado. Procurei por vestígios de bebidas, garrafas ou mesmo taças, mas era inviável, ou melhor, imperceptível. Qualquer evidência dessa estaria escondida pelos galhos desgrenhados do arbusto.
Logo as pessoas começaram a circular. Era o horário cidadão. Cada qual rumo ao seu trabalho. Com exceção dos distraídos, encurvados aos seus celulares — sempre em grande número e em qualquer lugar — quem passava por perto olhava com receio, pois quem não é da religião tem medo, inclusive Dona Maria. Não assumia, pois seria um sinal de fraqueza.
Mas Dona Maria se entrega (e sem perceber) quando começa a falar alto. É o seu sinal de medo. Agarra-se a vassoura como um náufrago a um pedaço de madeira. Para ele, a salvação; para ela, o resguardo de um desmaio.
Ela não pode ficar muito tempo ali, é preciso adiantar-se já que não demorará a chegada da primeira cliente. Não mencionei antes, mas Dona Maria é cabeleireira e manicure. Quem a vê reconhece imediatamente a profissão: blusas coladas que ressaltam o seu sobrepeso, bermudas jeans igualmente coladas, tamancos, cabelo feio, duro e seco na altura dos ombros. Fora o lance da fofoca. Sabe de tudo e um pouco mais. Possui língua ferina. É maldosa por efeito nato de dopamina alta. Denomina-se “evangélica”, mas não frequenta nenhuma igreja. Trabalha em casa, vive em casa. A noite conversa ao telefone. São diálogos intermináveis. Depois, apega-se as novelas que assiste.
E a oferenda? Quem a colocou? E para quem? Dona Maria, assim como eu (e qualquer outro) quer saber. Por mim, o divertimento, mas para ela… o medo! Medo da intenção, a quem foi direcionado. Será que foi para ela? Pode ser. É perto da sua casa. Embaixo do arbusto filhote plantado pelo seu marido. Maldito homem. Maldito Lindolfo. Velho cansativo. Velho lento.
Dona Maria bate com força a vassoura no meio-fio. Sai sujeira, sai azar, encosto. Repreendo-te na força do bater dos tamancos. Flamenco as avessas, às pressas. Desajeitada Dona Maria, receosa e ainda trêmula. Mais uma vez, ela olha para a oferenda. Não deveria. E se atraísse mais problemas para si?
Grita com o cachorro para disfarçar a tensão. O cachorro do Lindolfo. Cachorro teimoso que late alto. Dona Maria quando fala é alto. Sempre penso que está brigando com alguém. Fala para si. Pensa alto também. No alto de seus tamancos. Dona Maria é baixinha. A cliente que chega é um pouco maior. Dona Maria demora com cada cliente cerca de 2 horas. Tempo para lembrar, tempo para esquecer.
Descobre com a cliente novidades, boatos quentes, tece sempre as suas opiniões ferinas. É mulher de falar sem pensar. A cliente, inocente, reclama de cansaço, diz que desconfia estar com algum encosto. Dona Maria arrepia-se. Diz no ímpeto e com tremura “Tá repreendido, em nome de Jesus”.
Lembra que, outra cliente, um dia lhe contou que, numa malfeita, passou perto de uma oferenda e chutou, sem ver, o charuto caído e disse “Deus é mais”. No mesmo dia, sentiu uma lombeira no corpo e ficou de cama por vários dias. É de arrepiar. Dona Maria arrepiou-se novamente.
Quando termina o serviço, leva a cliente até o portão. Conversam animadamente. Dona Maria não olha em direção à oferenda. Deve ter esquecido. A cliente vai embora.
Dona Maria ainda bate os tamancos para entrar. Distrai. É quando um dos pés vira e lhe provoca dor. Quase cai. Equilibra-se no grito. Adentra mancando. Dona Maria havia pisado em falso, no buraco da calçada. Maldito buraco. Culpa do Lindolfo que não tampou. Há muito prometera consertar. Maldito Lindolfo. Paciência é virtude. Deus é mais.
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