A poda severa

Breno é o meu vizinho de frente. Trata-se de um homem, como se diz, corpulento. Às vezes acho que ele tem cara de Paulo. Não vejo traços de Breno, embora não saiba quais sejam, do mesmo modo devo dizer sobre Paulo. De qualquer forma, Paulo lhe cai bem. Como não se chama Breno e nem Paulo chamarei por este porque satisfaço assim minha implicância semiótica. É Paulo. E está bem!

O corpulento Paulo realiza reformas constantes em sua casa. Apiedo-me da pobre empregada que deve sofrer maus bocados. Paulo deve ser patrão chato. Chatice de patrão, chatice de poeira. Não há salário minimamente compatível.

A chatice de Paulo é compatível com a beleza da casa. E na calçada há um arbusto, bem em frente a porta de entrada. Quando os galhos se alongam, Paulo chama alguém para podar. O “trec, trec” da tesoura de jardim molda a planta, deixa arredondada. Beleza de algodão na plantação.

“Trec, trec” ressoa na minha sala, entrou direto pela janela. Como era de se esperar, nova poda. Um homem esguio, no alto de uma escada cortava os galhos, observado de perto por Paulo que, na calçada, assistia tudo satisfeito com os seus braços cruzados sobre a barriga saliente.

Não faz muito tempo que aquele mesmo arbusto foi podado. Nem deu tempo de descopar. Percebo que Paulo é um homem insatisfeito. Cada semana, um serviço diferente. Hoje é a poda. Não, espera. É algo mais. É a dilaceração de todas as folhas e galhos. É a poda mais severa. Não se sabe, no final, se fica ou resta somente o caule.

“Trec, trec”, ressoa o facão violento em cada galho. Seja por resistência destes ou a imprecisão do fio de corte, o ataque era cada vez mais virulento. Todo som que vinha era oco e não pude mais deixar de olhar. Focava em cada galho. Acompanho cada movimento como uma coreografia de dança contemporânea.

O homem transpira, o facão reflete os raios solares, as folhas cedem a pressão, os galhos mantêm-se eretos, porque qualquer envergadura é sinal de rendição. Paulo mexe no bermudão. Tenta afrouxar o elástico da cueca que lhe incomoda. Nada se compara ao que o arbusto sente. Sim. É um ser vivo, nasce, vive, floresce e agora perece frente a morte iminente.

Angustio-me. Por que fazes aquilo? Estava tão bonito, redondinho… Penso em como deve ser a dor do arbusto. Ora, ele sangra. A nós, o sangue; a ele, a seiva. Ela descerá fina e engrossará. A ação do calor, o embrutecimento do arbusto.

O homem reluz de tanto transpirar. É suor, sal e pedaços de folhas pela sua pele. A luta cresce desigual.

Minha boca está seca, o arbusto nunca foi regado, deve clamar pela chuva para o salvar. O homem também deve estar com sede. Se chovesse o arbusto seria hidratado e, quiçá, o homem desistiria de todo aquele ataque cruel. Não há clemência da chuva, mas há vento, que chega como uma brisa e cresce. Ganha forma e se faz sentir. O homem não desiste. Acelera, insiste. Os galhos caem completos e se espalham pela calçada como soldados abatidos na linha de frente. Um a um…

Homem impiedoso. Paulo apático. Facão de amola cansada. Lentamente a matança revela o novo horizonte. O muro. A casa de Paulo. A porta de entrada da casa bela do chato Paulo.

Não há galhos. Poucas são as folhas que restam. O tronco permanece intocável. O homem desce da escada. Dobra-a. Enxuga o tanto de suor que ilumina a sua cara exausta. Paulo está disposto. Ordena que junte toda aquela sujeira e jogue no terreno baldio, do outro lado. O homem obedece.

Junta todos aqueles bravos galhos e joga fora com ar de vencido. Depois da terceira jogada encerra sua tarefa do dia.

As pequenas folhas que sobraram sobre o tronco, as órfãs, balançavam ao ritmo do vento. Tudo se fazia silêncio. Um apático silêncio. Olhando daqui penso: até que ponto as folhas obedeciam à força do vento? Ou seria que, após toda aquela violência a alma, o elemental, do arbusto é que se erguia no ar em busca da finada paz? Tudo isso se sucedeu às 9 horas.

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