Ela chega para a mãe e pergunta o que havia achado. Mas a mãe respondeu “Sem novidade”. Uma resposta dúbia. Uma resposta que infelizmente não respondia. Ali, ao lado delas, vendo a situação concordava apaticamente. E isso não se deve fazer.
Bianca, acabara de descer do palco com o seu grupo após a marcação de cena. E dali a três horas iria se apresentar. Na verdade, não iria se apresentar. Iria competir. Bianca subiria ao palco duas vezes: a primeira sozinha e a segunda com o grupo. Era o seu primeiro ano de dança do ventre. Era a primeira dança de sua vida. Bianca, no alto de seus 16 anos e 1,67 cm, demonstra coragem e disposição. É necessário.
A dança do ventre é misteriosa, milenar e… Sei que pensou, sensual! Não, não era isso que diria, mas sim, sagrada. É uma dança contemplativa, que gosta de reverências e desconfio que escolha, com rigor, suas dançarinas. Há uma questão de merecimento sinalizado pelo shimmy perfeito.
Bianca é magra e corcunda, o segundo pode ser explicado pelo primeiro, e lhe falta consciência corporal. Sabendo disso ou não, ela toma aulas particulares, que tem mostrado bons resultados. Ela melhorou. Mas lhe falta algo. Inexplicavelmente ela se perde no palco ou talvez esqueça parte da coreografia. Isso a prejudica. Tira a chance de aumentar sua pontuação no campeonato.
A mãe não presta atenção. Leva a filha em todos os ensaios, mas no dia da apresentação se distraiu. Sentou-se a primeira fileira e disse que torceria. Em vez de observar e usar seu coração de mãe como faro certeiro, se distraiu assistindo uma live de receita no Instagram.
Não sei o nome dela. Pela aparência poderia arriscar Macabeia, a mesma da Clarice Lispector, vivenciada no cinema pela atriz Marcélia Cartaxo. Gozado que até o cacheado dos cabelos curtos é semelhante.
Até aquele momento, sentada atrás de Macabeia, concordava tacitamente com o “Sem novidades”. Não queria torcer, apenas fotografar, um hábito que cultivo. A cada entrada dos grupos concorrentes aproveitava para fazer os últimos ajustes na câmera do celular. E quando o grupo de Bianca adentrou fiz o que não fazia quando era repórter: clicava com velocidade e sem intervalos. Era necessário porque, desta vez, não tinha credencial e o local que pude usufruir era desafiante. E desconfortável, por estar sentada em uma cadeira de plástico.
Assim que terminou a apresentação, levantei-me e fiquei em pé próxima à saída do palco. E aproveitei para conferir as fotos tiradas. Qual não foi a minha surpresa em observar que Bianca é detentora de dramaticidade… Ela e Rosaline. Apenas ambas. Se comunicavam no palco sem perceberem.
Quando comentei sobre esse ponto com Rosaline, ela me disse que, em breve, devem formar uma dupla para a próxima apresentação. Vejo com bons olhos que dará certo. Há sinergia. Isso me anima. Isso me agita. Gosto de ver o nascimento de uma artista. Agora o estágio é embrionário.
Bianca não sabe. Dona Macabeia menos ainda. Muito distraída. Tanto que quando caiu um adereço de cabeça que segurava para a sua filha, nem percebeu. Logo vi e recolhi do chão. Cutuquei e lhe entreguei. Não me agradeceu. Com os olhos vidrados na live estava, com os mesmos olhos vidrados continuava. De nada adiantaria de minha parte esboçar nenhum comentário, ela não compreenderia. Todas as minhas palavras atravessariam os seus ouvidos com a mesma velocidade que adentrassem. Antevejo esses momentos e me resguardo.
Confesso somente a Rosaline, que, em algum momento e se sabe lá o porquê, me lembrou de duas meninas que integraram o grupo e acabaram desistindo. O motivo é desconhecido. É um risco iminente que se corre. Mas lembro, com algum esforço, dessas meninas. Não eram iguais a Bianca. Esta já traz em si o gérmen da coisa. Ou melhor, o terreno fértil semeado. É preciso que ela saiba disso, que cuide bem do solo, que o regue para a plantinha romper o subsolo e alcance a superfície, onde tudo se faz visível. Bianca verá, Dona Macabeia verá. Eu, antevejo.
Olho novamente as fotos, a dramaticidade, penso em Dona Macabeia distraída em sua live, lembro de Macabeia de Clarice que desejava o creme para cabelos, anunciado na televisão e que, se pudesse, compraria apenas para comê-lo… Em ambas faltam ambições maiores. Outra semelhança.
Aprendi com Lygia Fagundes Telles e Lya Luft que “a tarefa do escritor é a de apontar”. Inevitavelmente faço. E refaço. Devo dizer que Dona Macabeia deve ser perdoada. Não fica bem cobrá-la de algo que ela desconhece. Em seu mundo, em seu entender, faz o que é certo. Leva as filhas, aguarda-as pacientemente e retornam juntas para casa em segurança. Não sabe que isso é apenas isso. Há coisas maiores. Bianca não pode ser cobrada, não sabe o talento que tem. Nem motivada para se manter firme ao grupo, mas sim esclarecida para saber para que veio ao mundo.
Infelizmente, Rosaline não falará. A timidez não permite. Alguém precisará ser o mensageiro. Receio que seja eu. Bom, para tal incumbência preciso apenas de uma oportunidade. E penso em começar com um “Bianca, te vi e tenho uma novidade…”. Mais ou menos assim.
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