A cobra e a gata

_“Vixi, Dona Fulana compartilhou a foto de uma cobra no grupo” – disse Rosaline, quase para si mesma.

_ “Como é que é?” – Reagi incrédula.

_ “É… A Dona Fulana tirou a foto e colocou no grupo. E essa é das grandes. Olha só!”

_ Nem vem. Não quero ver.

Mantinha-me incrédula e impassível. Era a segunda vez. Na primeira também era grande. Fizeram até vídeo para compartilhar no grupo do condomínio. E como era de praxe, não só naquele grupo como qualquer outro do WhatsApp, ninguém explicava direito, não sabia detalhar. Eram fotos desfocadas e muitos erros gramaticais capazes de eriçarem todos os pelos dos braços.

Precisava ver para tentar adivinhar o local em que a cobra foi vista. Mas não queria ver porque a imagem me dá gastura. Desde criança. Ainda pequena, quando meus pais eram caseiros em um casarão em Jacaraípe, o patrão tinha o estranho costume de manter cobras mergulhadas, não sei se era em água ou cachaça, dentro de potes de vidro colocadas sobre a geladeira. Para o meu azar, tinha que passar por ali todos os dias. Era um olho esguio sobre a geladeira e outro no corredor, o qual cruzava correndo.

Mas agora é calçada que serpenteia um vasto quarteirão de um lote cheio de mato. “A cobra é grande. Pegaram ela atravessada na calçada. Veja só, ocupa todo o espaço. Deve ter um monte dela dentro do terreno” – concluiu Rosaline.

Não quero ver, nem imaginar. Pois logo lembro da vez passada que uma grande, escura e espessa foi parar no portão do vizinho da frente, e só não entrou na casa dele, porque não havia fresta suficiente. Foi um rebuliço danado na rua, com gritos estridentes de crianças e mulheres. Até que outro vizinho resolveu atraí-la com um enorme galho seco, a qual se enroscou e ele a atirou, com galho e tudo, justamente no terreno cheio de mato, bem ao meu lado.

_ “Dona Ciclana mandou aqui, no grupo, que saiu para procurar a gata, e que não a está encontrando” – atualizou-me Rosaline.

Aqui, por ora, um adendo. A gata é Kira, de pelagem manchada, a musa felina que já contei aqui, antes. E, Dona Ciclana andava de implicância com a bichana. Sempre emburrada, num prazo de um ano, adquiriu dezenas de rugas profundas. Kira, com a presente indiferença felina, ignorava, enquanto eu, reles mortal observadora do cotidiano, percebi – a cada cara feia que sobrava em minha direção, por cuidar da bichinha com zelo e carinho -, que a ausência do bom humor antecipa o envelhecimento. Importante lição estética.

_ “E desde quando Dona Ciclana se preocupa com a Kira?” – Indaguei e continuei – “Bom, se tiver oportunidade direi que agora resolveu ser coerente, pois quem dizia gostar de bicho, que se compadecia com a doença do saudoso Mingau (o gato loirinho), não fazia sentido toda aquela amargura e implicância”.

Nisso fui à janela. Nada vi. Nada de Dona Ciclana, nada de Kira e nem de Felix, o apaixonado gato frajolinha.

_ “Também não estou vendo nada e nem ninguém” – disse Rosaline.

Resolvi percorrer cada uma das três janelas: a que dava para a garagem, a que dava para a rua e parte da calçada e a que dava para o matagal. Nada de Kira, nada de Felix, nada de cobra.

_ “Um aqui, no grupo, acha que é uma jiboia” – leu Rosaline.

Para mim tanto faz o tipo, cor e tamanho, cobra é um perigo silencioso.

_ “Ninguém a está encontrando. E de noite, quando você descer, ela não estará por ali” – ponderou Rosaline

_ “É que ninguém procurou. E eu não quero encontrar, não tenho diálogo com esse bicho” – falei em meio a sobressaltos.

_ “Já que você está com medo, deixa que de noite eu desço e alimento os gatos”.

_ “Estou, mas você não irá sozinha”.

_ “Mas você está com medo, quase tremendo” – observou Rosaline

_ “Lógico, bicho tinhoso. Veja bem, a disgramada é da cor da calçada, essa iluminação pública de LED é uma verdadeira penumbra, ainda tem o arbusto sobre o comedouro dos gatos, há o bueiro, há o mato, há a lixeira, e eu sou surda!”

_ “A vizinha X postou, no grupo, para chamarem os bombeiros que eles a recolhem”.

_ “Agora? Já se passaram o quê, trinta minutos? Até parece que a dona cobra esperaria: ‘Oh, senhores bombeiros, estava aguardando-os com certa ansiedade’… É cada uma!”

Rosaline riu. Sempre acha graça das coisas que falo, das palavras que emprego e como as encaixo em cada contexto, cada observação… Ela olha novamente o celular e lê:

_ “Ih… Até a vizinha Y resolveu se manifestar. Falou que quando chega à noite sempre encontra a porta de vidro da recepção aberta”…

_ “Estava demorando a submissa que, por ser submissa ao marido, aproveita toda e qualquer oportunidade para espezinhar. Tão frágil, cuja proteção depende de uma porta de vidro fechada. E olha que aquele enrustido do marido dela vive deixando o portão de ferro, da garagem, não aberto, mas escancarado. Só não entra bandido porque não quer” – falei, falei mesmo.

A noite se aproxima. Coloquei a lanterna para recarregar. Há muito não a utilizava. Vacilo, vacilo meu. Rosaline sentindo a tensão que me consumia – pois sabe de “cor” que o perigo era elevado, já que a distração que envolve todo surdo poderia me colocar em apuros diante da vantagem silenciosa e sinuosa do réptil repugnante – decidiu descer para dar uma volta e “sentir” o ambiente, numa simples demonstração de uma fidedigna canceriana.

Quando voltou disse que tudo estava calmo. Felix e Kira estavam relaxados em plena calçada. Aliviou-me. Demorei ainda uma meia hora para descer, pois aguardava completar a carga da lanterna.

Como é de costume noturno, ambos os gatos me aguardavam junto a tal porta de vidro, a qual estava fechada, para alívio da vizinha. Assim que me aproximei do comedouro, munida de lanterna e vassoura, vasculhei tudo e vi que tudo permanecia calmo, com exceção de Kira, a qual olhava para todos os lados com as costas e pelos eriçados. A gata estava estressada.

Assim que lhe ofereci o seu jantar de ração, acalmou um pouco, mas manteve-se alerta. Compreendi que ela, a dona e proprietária da garagem do meu prédio, havia feito algo e espantado a cobra.

Já se passaram cinco dias e tudo se mantém em harmonia. É noite e aproveito para chegar a janela de frente ao terreno repleto de mato. Há algo preto, bem no meio. Não consigo saber do que se trata. Lembro da lanterna, pego-a e lanço sua luz sobre aquilo. Não é cobra. É Kira majestosamente sentada. Ignora a luz. Observa o horizonte. Está relaxada.

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