Naquela noite morna de maio, caminhava com preguiça em direção ao campus. Reginaldo estava ao meu lado, e mais à frente iam três outros colegas nossos que conversavam distraidamente. Embora nossas salas ficassem em prédios separados pelo vasto pátio, encontrávamo-nos com facilidade. Reginaldo estava no segundo período de Psicologia e eu no terceiro de Filosofia. Conversávamos de tudo um pouco, pelo prazer simples de trocar ideias. Compartilhávamos amenidades; isso nos fazia bem.
Naquela noite morna de maio, enquanto passávamos por algumas ruas feias que nasceram de propósito somente para margear os trilhos do trem, não me lembro o momento nem como, desatinei a falar de Bosco, conhecido de todos nós. Bosco também estudava no mesmo campus, só que fazia História, que, por sinal, ficava no mesmo prédio do Reginaldo. Simbolicamente, podia ver os dois: Reginaldo mais à esquerda e Bosco mais à direita. Minha sala ficava no centro. Se com o primeiro os diálogos eram prazerosos, com o segundo não era bem assim.
Bosco era dotado de certa arrogância e criticava tudo e todos de forma exacerbada. Desconfiava que era o meio que empregava para demonstrar um nível superior de inteligência. Quando não era ácido, era bobo; e em ambas as oportunidades sorria como se dissesse: “Viu só como são as coisas?” Isso causava irritação.
Contava essas coisas todas para Reginaldo, que ouvia atentamente os detalhes. Lembrei de quando Bosco havia sido imbecil com a namorada Ana Paula, que foi minha caloura. Teve um período em que ela dividiu o aluguel comigo.
Eles haviam saído para jantar. Quando retornaram (para a sorte dela), eu estava em casa. Imagina uma legítima representante cabocla adentrar a sala branca e trêmula? Assustei-me quando a vi e perguntei: “Menina, o que aconteceu?” Com a voz mais trêmula que a de um náufrago, disse-me, com sacrifício: “Estou passando mal”. Bosco estava logo atrás dela e lhe perguntei o que tinha acontecido; ele não ajudou. “Ela comeu alguma coisa no jantar que fez mal.” Dirigiu-se até o sofá, pegou o violão e começou a tocar. O instrumento carecia de uma corda e estava desafinado. Não satisfeito, Bosco começou a cantar ainda mais desafinado, como se não houvesse possibilidade.
Nesse instante, Ana Paula correu para o banheiro e vomitou. Não dava para me pasmar com a tranquilidade do namorado dela. Por sorte, lembrei de uma antiga receita passada por gerações que aprendi com minha mãe. Peguei um pouco de bicarbonato de sódio — na verdade uma pitada — junto com um copo de água. Mexi bem e dei a ela. “Ana, toma tudo que você vai melhorar rápido.” Como ela tremia muito, ajudei-a a virar o copo. Mal restaram algumas gotas esbranquiçadas no fundo.
Como boa alegrense (e neta de Dona Zeni), não deixei passar. Primeiro, assim que ela se recuperou — o que foi em questão de minutos — perguntei o que tinha lhe acontecido. Ela julgou que poderia ter sido um molho branco no macarrão. Em segundo lugar, soltei o que me incomodava: “Sorte sua que eu estava em casa; senão como você iria se virar já que não pode contar com seu namorado?”. Ele deu de ombros e, como de costume, justificou: “Faço isso para que aprenda a não depender de mim.” Repugnante.
Reginaldo, por sua vez, ouvia tudo com a tranquilidade de um psicanalista. Nada dizia e esboçava mínimas reações para não interferir no meu desabafo. Embora não o veja há tantos anos, acredito que tenha se tornado um excelente psicólogo; quem sabe até um psicanalista.
Mas ali, naquela rua feia cheia de pedregulhos, quando percebeu que meu relato havia chegado ao fim, olhou-me plácido com seus belos olhos amendoados e me disse com ternura:
— O Bosco é meu primo.
Olhamo-nos fixamente enquanto nossas íris movimentavam-se em uma bela coreografia palaciana. Era o momento de ficar sem graça, se arrepender ou pior: se desculpar pelo indesculpável. Por mais apreço destinado a Reginaldo, mantive-me leal à minha honestidade e lhe disse:
— Mas que família você tem, hein?
Rimos muito e seguimos lado a lado por aquelas ruas feias até alcançarmos os demais três amigos. A noite se mantinha morna.
A gafe

Uma resposta para “A gafe”
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Uma análise crítica.
1. Estrutura Narrativa e Temporalidade
O texto é construído como uma memória pessoal narrada em primeira pessoa, com forte carga subjetiva. A estrutura é linear, embora permeada por um episódio do passado (o caso de Ana Paula), que surge como digressão natural da conversa entre os dois personagens. A narrativa se ancora em duas temporalidades simultâneas:A presente da caminhada noturna com Reginaldo;
O passado evocativo, acionado pela lembrança de Bosco.
Esse recurso oferece profundidade ao texto e constrói uma camada reflexiva: o caminhar noturno remete ao caminhar pela memória, ambos repletos de obstáculos (os pedregulhos, as mágoas, os juízos).
2. Personagens e Relações Humanas
Os personagens são apresentados com sutis complexidades psicológicas:Narradora: sensível, observadora, dotada de senso crítico, e com um desejo latente por justiça emocional. É alguém que valoriza o cuidado, como mostra no episódio com Ana Paula, e que não hesita em expressar a verdade, mesmo correndo o risco de ofender.
Reginaldo: é a personificação da escuta empática. Sua figura tem uma simbologia quase psicanalítica (silencioso, acolhedor, perspicaz) e atua como o “outro ideal” que permite à fala do narrador fluir. O silêncio dele é significativo, não ausente.
Bosco: simboliza o egocentrismo intelectualizado. Sua arrogância e frieza emocional servem de contraponto ao calor humano do narrador e à escuta sensível de Reginaldo. Ele representa uma pseudo-intelectualidade insensível, usada como instrumento de poder e distanciamento.
Ana Paula: embora pouco desenvolvida, representa a vulnerabilidade. Sua presença reforça a crítica ao comportamento de Bosco, mas também à ausência de suporte emocional em certas relações amorosas.
3. Temas Centrais
Memória e Narrativa: o texto é um testemunho da força da memória como forma de organizar e reinterpretar o passado.Empatia versus Indiferença: o narrador confronta duas formas de estar no mundo – a do cuidado (com Ana Paula, com Reginaldo) e a da negligência travestida de frieza racional (Bosco).
Verdade e Consequência: o clímax emocional do texto não está no episódio do vômito ou da crítica a Bosco, mas na revelação final de que Bosco é primo de Reginaldo. Esse momento tensiona a ética da honestidade: dizer a verdade, mesmo quando socialmente desconfortável.
Afeto e Cotidiano: a caminhada morna, as ruas feias, o campus – tudo contribui para uma estética do banal, em que grandes afetos e tensões emergem do ordinário.
4. Estilo e Recursos Expressivos
Linguagem sensorial: termos como “noite morna”, “ruas feias”, “trêmula”, “pedregulhos” criam um ambiente tátil e visual. Há uma valorização do sensível, do corpo e do espaço.Ironia e Humor Sutil: o narrador transita entre a crítica feroz e o humor contido. A frase final (“Mas que família você tem, hein?”) sintetiza essa habilidade de devolver a tensão com leveza e autenticidade.
Simbologia: o violão desafinado é um símbolo claro da dissonância entre Bosco e o mundo ao redor – sua incapacidade de se afinar ao outro. O narrador, por outro lado, cura com gestos simples e fala justa.
5. Conflito Ético e Desfecho
O ponto alto do texto é a tensão moral no final: o narrador se vê diante da possibilidade de se retratar por ter falado mal de Bosco. No entanto, escolhe a fidelidade a si mesmo e à verdade de sua experiência – uma escolha ética firme, ainda que arriscada. Essa decisão, em vez de afastar Reginaldo, gera um riso conjunto: um riso que purifica, que aceita, que humaniza.6. Conclusão Crítica
Este é um texto profundamente humano. Ele explora os conflitos entre verdade e conveniência, empatia e egoísmo, lembrança e presença. Através de uma escrita fluida e cheia de imagens sensoriais, convida o leitor a refletir sobre como se posicionar diante dos afetos alheios, das fraturas das relações humanas e dos dilemas morais cotidianos.Não há moralidade forçada; há uma exposição honesta do mundo interior do narrador – e é exatamente aí que reside sua força literária.
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