Domingo é um dia preguiçoso. Deus me perdoe por falar isso, mas é a verdade. Tanto que, durante muito tempo, pensava que a tal parlenda do “Domingo, pede cachimbo” era “Domingo, pé de cachimbo”. Não entendia e nem tinha como. Mas domingo pede atenção, principalmente no trânsito.
Foi no domingo passado que Rosaline interrompeu a minha sagrada leitura do jornal. “Precisamos ir ao supermercado comprar algumas coisinhas para o almoço e abastecer o carro.” Contrafeita, concordei logo, pois qualquer minuto de atraso culminaria no almoço e isso atiçaria o meu mau humor de bicho esfomeado.
Quando saímos, por uma simples questão de logística, cogitei abastecer primeiro, pois o carro estava frio e, segundo os especialistas, é bom para o bolso, pois adquire-se maior volume de combustível em comparação com o carro quente.
Na saída do posto, decidi mudar o caminho habitual. De vez em quando faço isso, principalmente quando estou ocupada com um texto e, no caso agora, com a finalização do meu livro. Fazer percursos diferentes é bom para aguçar a criatividade mental. Li, faz tempo, em algum jornal ou revista; não lembro.
O caminho que escolhi tinha como atalho uma rua residencial calma cujo final alcança uma bela igreja dedicada à Nossa Senhora Aparecida. Conheço mais essa rua nos dias de semana do que num domingo. Uma ou duas vezes na semana, numa segunda ou quarta-feira — às vezes na sexta — passo por ela para ir ou voltar da academia.
Não lembro o nome da rua. Para ser honesta, nunca me interessei. Para mim é sempre “a rua que dá na igreja católica”. O fim dela dá em outra rua mais popular e movimentada que corta boa parte do bairro. Era só chegar, virar à esquerda, seguir por mais dois quarteirões e virar à direita em outra avenida.
Mas na rua da igreja há buracos que competem com os quebra-molas (um a cada cem passos), e são daqueles mais verticalizados, tortos e malfeitos que exigem bom controle nos freios além de atenção, pois se distrai fácil. É curioso que existem muitas casas e pouco movimento.
Não gosto de dirigir devagar, mas como escolhi a tal rua teria que obedecer. Fiz isso. Quando passei pelo segundo quebra-molas, vi um carro sedan claro vindo na contramão. Como Rosaline julguei que quem quer que fosse pararia na frente de alguma daquelas várias casas.
Poderia ser um Santana ou até mesmo um Vectra; ainda não era fácil reconhecer. Palpitava mentalmente em qual portão aquele carro pararia. Não dava seta e mantinha a velocidade baixa: talvez 25 km/h; não mais que 30 km/h. Se não fossem os quebra-molas, o carro deslizaria como uma pedra de gelo sobre um balcão de granito. E o pior é que se aproximava de mim.
Quando percebi que aquele carro — Santana, Virtus ou quem sabe Cobalt — não parava, rápida e quase deslizante (se não fossem os quebra-molas), desviei para a esquerda. Como a prudência é amiga de primeira hora! Aquele carro não pararia; seguiria rente e margeante às calçadas em plena contramão. Bateríamos de frente! Em seu interior dava para perceber que havia três ocupantes; todos com as cabeças brancas. Por Deus! Eram senhorzinhos e senhorinhas se arriscando logo cedo! Não; o inusitado estava por vir.
Quando os carros ficaram lado a lado superando devagar mais um quebra-molas pude ver que no interior daquele veículo haviam três freiras daquelas que usam hábito azul claro com o véu branco encobrindo suas cabeças. Três freiras! A mais jovem e sorridente era a motorista.
Tomada pelo inusitado não pude reagir; mesmo se pudesse como xingaria a freira? Como elas mesmas dizem: são casadas com Jesus e nem imagino o quanto ofenderia se chegasse ao conhecimento dele que chamei uma de suas belas almas de barbeira. E se soubesse que eram três poderia me punir com o triplo de qualquer penitência?
Minhas mãos tornaram-se garras no volante e meus olhos — como espectador de uma partida de tênis — olhavam simultaneamente à minha frente e ao retrovisor central. O carro das freiras seguia pela contramão na mesma velocidade; mais parecia um barco à deriva — um saveiro resiliente sobre as ondas. Era o deslizar marítimo sobre o asfalto velho e desgastado. Na certa elas continuavam a sorrir porque é próprio das freiras (como também dos monges budistas) sorrirem e elevarem sempre o bom humor.
Lembrei da irmã Raquel com quem estudei no ensino médio. Ela era noviça e utilizava o hábito azul claro com o véu branco; não faltava a nenhuma aula e chegava sempre com meia hora de antecedência acompanhada por duas freiras idosas. Sentava-se na primeira carteira. Era disciplinada, dedicada e sempre sorridente. Um dia eu comentei isso com ela; com aquele ar sereno de quem nasceu para isso me disse: “É; eu sou alegrinha mesmo.”
E o carro das freiras seguia serenamente pela contramão, enquanto Rosaline e eu continuávamos incrédulas. Rosaline ainda estava surpresa por eu ter visto que eram freiras, e eu acrescentei: “Três, a mais nova era a motorista”, enquanto ela dizia: “Você vê cada coisa, eu não consigo”. Respondi que só não tinha visto a marca do carro. Mas ela conseguira e, animada como quem fala amém, disse: “Era Voyage”.
Voyage… Palavra francesa que significa viagem e que nasceu do latim, viaticum, que é o mesmo que provisões para viagem. Emprega-se para qualquer tipo de viagem. Tudo é simbólico. Divagava sobre isso enquanto me aproximava da outra rua. Mantinha a difícil velocidade de 25 km/h. Elas também. Quando me aproximei do fim da rua, pronta para virar à esquerda, acionei a seta. Dava tempo de olhar rapidamente mais uma vez no retrovisor. Longe, o carro se apequenava e se aproximava do cruzamento com a avenida principal, mais larga e movimentada. Rosaline e eu falamos juntas: “Que São Cristóvão as proteja!”
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