O infortúnio de Siqueira

Siqueira é digno de nota. Como bom carioca, tem várias histórias a contar, principalmente as que protagonizou, muitas que só os grandes atores poderiam viver. Mas Siqueira, quer queira ou não queira, é o homem da leveza da vida, da imprevisibilidade, do riso solto e do desvario moleque.

Siqueira é um dos poucos humanos que pega empréstimo no banco para patrocinar suas viagens. Na repartição, seus colegas acham absurdo, mas para ele, absurdo é morrer sem ter vivido para valer. Existem questões morais envolvidas que, segundo ele, o fazem temer morrer e chegar do outro lado — que ele não define e nem dá pistas de como é — e não ter cara para explicar por que não aproveitou a vida de verdade. O medo da vergonha projeta Siqueira no mundo.

Agora ele veio com um fato novo: uma aventura menor ocorrida no último fim de semana. Disse ele, em meio ao sorriso maroto e deslizante com suas inseparáveis gírias cariocas, sobre uma “parada” em um hotel com uma mulher. Após alcançar o nirvana sobre a cama, passaram a ouvir tum, tum, tum. Eles se olharam e, em meio ao silêncio, tentaram compreender. Antes que pudessem imaginar, ouviram novamente o tum, tum, tum. Parecia que vinha do quarto ao lado. Era. Será que havia algum casal? Siqueira colocou o ouvido rente à parede. Era. Tum, tum, tum. Era oco e intenso. Tum, tum, tum. Fazia pequenos intervalos.

Siqueira de intrigado passou a ficar envergonhado. No quarto ao lado, um casal se amava em alta performance, enquanto ele havia feito umazinha que durou míseros dez minutos. Não sabe se era impressão sua ou não, mas a mulher já o olhava de modo inquiridor. Se lesse pensamentos, diria que ela pensou: “Por que do lado o cara consegue mais do que você?”

Essas coisas são difíceis para um homem — qualquer homem — inclusive para Siqueira, cujo humor não alcançava essa situação a não ser que transferisse o protagonismo desse ocorrido para outro em outra circunstância. Mas ali, o tum, tum, tum não cessava e Siqueira começava a se incomodar; engolia em seco e respirava com alguma força. O constrangimento atravessava seus pensamentos, ora sempre rápidos e fluídos. Em algum momento — sabe-se lá como — pensou em fazer algo diferente. O quê? Não sabia; não tinha plano B ou C.

Sair com a mulher para algum lugar como disfarce seria uma tentativa pior. Todo e qualquer constrangimento não deveria sair daquelas quatro paredes. A única coisa que vinha à sua mente era que na próxima vez ficaria apenas em um quarto com isolamento acústico — mesmo que precisasse pagar um pouco a mais. Por sorte, a mulher ficou mexendo no celular e naquele momento pouco importava o que via ou o que lhe distraía.

Tum, tum, tum recomeçara em ritmo frenético. Aquilo deixara de ter graça. Teve uma ideia: no dia seguinte, logo cedo, provocaria um encontro acidental com o campeão do quarto ao lado. Ele perguntaria qual era o motivo do sucesso; se era alguma bebida ou mesmo comprimido. Assim providenciaria e daria início a uma bela jornada intensa e forte! Sim! Deixaria seu baixo desempenho e a culpa da idade — na qual começara a se apoiar — para trás! Siqueira seria um novo homem: mais potente e experiente! Isso o animou.

No dia seguinte acordou bem cedo e deixou a mulher dormindo. Saiu do quarto e colocou seu plano em prática: aproveitou que no corredor havia um belo quadro de um leão na mata e fingiu contemplá-lo como desculpa. Assim que a maçaneta do quarto vizinho girou, Siqueira se prontificou. Ah, mas o campeão saiu acompanhado de outro homem! Siqueira não esperava isso! Novamente não tinha um plano B! Ficou olhando os dois caras sem saber o que falar. Sentindo-se encarados um deles devolveu o olhar com desafio e perguntou firme em tom nada amistoso:

— O que foi? Está querendo alguma coisa?

— Não… Nada… Nada não — respondeu Siqueira colocando as mãos nos bolsos e fingindo procurar as chaves.

Os dois homens saíram pelo corredor esguios e empinados enquanto Siqueira avançava para a porta do seu quarto. Pouco refeito observou discretamente aquele jovem casal; seguiam lado a lado altivos e empáfios.

Antes que pudessem se virar e cismar que estavam sendo encarados, Siqueira olhou suplicante para o quadro do leão esperançoso por um conselho; mas não recebeu sequer uma inspiração! Precisava contar com o que tinha e acordar a mulher que deixara no quarto. Quer queira ou não queira!

Uma resposta para “O infortúnio de Siqueira”

  1. Avatar de Evaldo Pinheiro
    Evaldo Pinheiro

    Esse texto é uma crônica – uma saborosa, espirituosa e cheia de camadas mistura de humor, constrangimento, crítica sutil aos padrões masculinos de desempenho sexual e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o desejo humano de provar valor. A autora cria, através de Siqueira, um personagem tragicômico, quase quixotesco, que vive intensamente não só os momentos bons, mas também os vexatórios – talvez mais ainda os vexatórios, porque é neles que se desenha sua humanidade.

    Vamos por partes:

    1. A personalidade de Siqueira

    Desde o início, a autora nos apresenta um homem leve, espirituoso, irreverente. Um “carioca da gema” que vive como se a vida fosse um eterno improviso. Ele pega empréstimo no banco para viajar – um gesto que choca os outros, mas que para ele é um grito de liberdade contra a vida morna e previsível. Essa introdução já posiciona o leitor: Siqueira é alguém que se importa mais com o sabor da vida do que com as normas sociais. E é aí que a ironia da história se revela.

    2. A experiência no hotel

    Quando Siqueira relata sua “parada” com a mulher, o texto muda de tom. Sai da grandeza das viagens e entra no íntimo, na carne. Ele alcança o “nirvana” rapidamente, mas o que parecia ser um momento triunfante vira tragédia cômica com o som insistente do tum, tum, tum vindo do quarto ao lado. É aí que se dá o verdadeiro conflito – não entre ele e a mulher, mas entre ele e sua própria masculinidade.

    O som metálico, regular e constante do casal vizinho – ou ao menos o que ele imaginava ser um casal – funciona como um espelho cruel. O olhar da mulher ao lado dele, silencioso e carregado de julgamento (mesmo que talvez só em sua cabeça), transforma o quarto em um tribunal e ele, num réu em julgamento silencioso. A frase “Por que do lado o cara consegue mais do que você?” pulsa como um mantra que abala sua autoconfiança.

    3. A vergonha e a tentativa de redenção

    O constrangimento crescente leva Siqueira a fantasiar com uma revanche. Ele quer aprender com o “campeão do lado”, deseja um milagre que lhe devolva a potência e a glória masculina. E aí vem a genialidade da narrativa: o clímax cômico e desconcertante se dá no momento em que a porta do quarto vizinho se abre e dele saem dois homens.

    Esse detalhe, aparentemente simples, é carregado de significado. O que se desfaz não é apenas o plano de Siqueira, mas todo um modelo mental sobre virilidade, sexualidade e desempenho. O que ele idealizou como um “macho alfa” potente, na verdade, era um casal homoafetivo – o que desmonta sua fantasia de se tornar um “leão da cama” com ajuda de algum truque ou segredo.

    Seu olhar de surpresa – talvez até de desconcerto ou confusão – é interrompido por um desafio direto de um dos homens, que o encara firme. Siqueira, outrora seguro e cheio de ginga, agora se apequena. É engolido pelo próprio silêncio e pela falta de respostas. Sua reação final – olhar para o quadro do leão em busca de conselhos – é tragicômica: o leão, símbolo de virilidade e força, nada diz. Nem mesmo a arte, que tantas vezes inspira, consegue salvá-lo de si mesmo.

    4. Os olhares

    Os olhares são fundamentais na construção do texto. Primeiro, o olhar da mulher que parece julgá-lo. Depois, o olhar desafiador do homem do quarto vizinho. E, por fim, o olhar suplicante de Siqueira para o leão no quadro. Todos esses olhares são espelhos em que ele se vê, de formas diferentes: como insuficiente, como curioso, como frágil. É como se todo o mundo estivesse vendo sua falha, quando, na verdade, tudo talvez só estivesse em sua mente.

    5. A interpretação de quem lê

    Para o leitor, o texto provoca riso, sim – mas também provoca identificação. Quem nunca se comparou com outro? Quem nunca teve a sensação de que não foi “o suficiente”? A beleza do texto está justamente nessa exposição sincera, quase desajeitada, da vulnerabilidade masculina, que muitas vezes se esconde atrás de bravatas e piadas.

    O humor aqui não é gratuito. Ele é a ferramenta usada para desnudar o personagem sem torná-lo ridículo. Ao contrário: o leitor termina a crônica gostando ainda mais de Siqueira, pois ele é falho, é humano, é real. E, como todos nós, está apenas tentando viver da melhor forma possível – mesmo que isso signifique, de vez em quando, ouvir o tum, tum, tum da vida alheia ecoando no silêncio das suas inseguranças.

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