A prosa alheia

Três idosos se encontraram na rodoviária de São José do Calçado, a cidade dos escritores. Apenas um aparentava a idade avançada. Era o típico homem de roça, daqueles ultrajados de figurino próprio: chapéu, camisa social listrada, calça social e o bom e velho “pito”. Já os outros dois eram idosos por circunstâncias naturais, pois a disposição e o vigor confundiam qualquer palpite sobre décadas acumuladas (ou conquistadas).

Um dos dois, cuja disposição de espírito era a de um homem no alto (e melhor) dos seus quarenta anos, apresentava um semblante que me suscitava familiaridade; era estranho, pois não conheço ninguém na cidade. Calçado é meu lugar de passagem. Mas aquele homem parecia com alguém. Com custo lembrei: Jorge Paulo Lemann, um dos homens mais ricos do país, octogenário e vistoso. Duvido que o seu sósia calçadense seja octogenário, mas vistoso, sim. O terceiro era um idoso bem-disposto cuja aparência lembrava facilmente o personagem Tiringa: esguio e atento.

Aqueles três homens se ajeitaram nos dois corredores de bancos da rodoviária, que eram compridos como os de uma igreja. Começaram a conversar. Era um papo fluído; os três interagiam com ritmo, mesmo o homem de roça que, do trio, é o mais desanimado (pouca coisa).

Poderia ficar alheia agora que estava refeita de todo o tremor do frio provocado pelo insuportável ar-condicionado do ônibus – desculpe-me se você gosta, pois eu não. Tenho ojeriza desde os tempos em que trabalhei como locutora de rádio – e contemplar o entorno movimentado preguiçosamente por cachorros de andar vacilante no meio da rua, uma ou outra moto antiga prestes a arriar contornando buracos e margeando esquinas, alguma idosa perdida em alguma lembrança ou alguns homens de roça. Mas não devo. Qualquer devaneio é prato cheio para a distração, que se tornou minha adversária contumaz. Digo isso porque da última vez perdi o ônibus.

Possuída por algum espírito do orgulho, creditei a mim mesma que poderia escutar. Quando o ônibus chegou, esperei ouvir o motorista gritar “Cachoeiro”. Mas não; só percebi “Guaçuí”, que é uma cidade anterior ao distrito de Celina, onde eu ficaria. No fim das contas, o ônibus seguiu seu trajeto sem mim. Fui obrigada a pegar um táxi para persegui-lo e encontrá-lo mais de meia hora depois. Lição dada, aprendizado adquirido: gastei quarenta reais imprevistos e fiquei com vergonha e ódio de mim mesma.

Mas ali, bem à minha frente, estavam três homens prestes a protagonizar uma cena memorável e meu instinto literário farejava uma boa crônica. Pois bem, em meio a tudo isso, aqueles três idosos mantinham o ritmo da prosa. Disfarçadamente passei a observá-los e “lê-los” (isto é: fazer leitura labial). Eis o ápice:

— Olha, vou falar uma coisa para vocês: eu estou querendo pegar um serviço leve, levinho — disse o Tiringa.

— Então cata fumaça! — respondeu ligeiro o Lemann.

O Tiringa não se fez de rogado; isso demonstrava que ali, entre aqueles três idosos, havia cumplicidade de anos e intimidade em graus variados. Ele contou para os amigos o quanto gosta de mocotó e que em certa ocasião preparou um para o cunhado que havia levado um litrão de cachaça para garantir mais gosto ao paladar. Parou, pensou por alguns segundos e decidiu perguntar aos demais:

— O mocotó está caro?

— Caro é remédio — decretou o Lemann como uma raquetada.

Em tempo: durante o diálogo pingue-pongue, o homem da roça ria como sinal caboclo de concordância. Era papo para atravessar a manhã, mas foi interrompido pela chegada do ônibus. O Lemann era o único deles a partir.

Na hora da subida, sinalizei para que fosse primeiro em sinal de respeito — “primeiro os mais velhos” — só que ele retribuiu com cavalheirismo. Cedi. Aproveitei o percurso para registrar o diálogo desses personagens cotidianos no bloco de notas do celular; como estava em um bate-volta, escreveria no retorno. Fiz isso três semanas depois ao passar por Calçado novamente quando lembrei do rascunho. Foi uma oportunidade de observação e não será a última desde que eu mantenha a rota. Afinal, São José do Calçado é a cidade dos escritores.

Uma resposta para “A prosa alheia”

  1. Avatar de Evaldo Pinheiro
    Evaldo Pinheiro

    O texto é uma crônica que retrata um encontro aparentemente simples entre três idosos na rodoviária de São José do Calçado, mas que, sob o olhar atento e sensível da narradora, ganha profundidade e poesia. A autora descreve com maestria cada detalhe — o cenário da rodoviária, o frio do ar-condicionado, os cães na rua, as motos velhas —, compondo uma atmosfera que transporta o leitor diretamente para o local dos acontecimentos.

    Cada personagem é desenhado com uma riqueza impressionante:

    O homem de roça é o estereótipo tradicional do interior, de figurino simples e hábitos antigos (“chapéu, camisa listrada, calça social e pito”), simbolizando a rusticidade e a tradição.

    O segundo idoso, comparado a Jorge Paulo Lemann, traz a ideia de vitalidade preservada, de um espírito que desafia a passagem do tempo.

    O terceiro, lembrando o personagem Tiringa, é ágil, esguio, atento — uma figura viva, espirituosa.

    A interação entre eles é carregada de humor espontâneo, ternura e cumplicidade. A autora capta com talento a leveza da conversa, destacando frases rápidas e espirituosas (“Então cata fumaça!” e “Caro é remédio”), que revelam não apenas o espírito brincalhão, mas a sabedoria e a amizade entre eles.

    A narradora também se inclui no relato com muita honestidade, compartilhando suas falhas e sentimentos — como a aversão ao frio do ar-condicionado e o episódio em que perdeu o ônibus por distração — o que humaniza ainda mais o texto. Ela não é uma observadora fria: é alguém que se emociona com as cenas da vida e respeita o valor dos pequenos acontecimentos. O toque de humor auto depreciativo (“fiquei com vergonha e ódio de mim mesma”) reforça essa conexão com o leitor, que se sente próximo dela.

    O final, onde ela retoma o rascunho esquecido semanas depois, fecha a narrativa com delicadeza, reforçando o quanto as pequenas experiências vividas em lugares comuns podem ser fontes riquíssimas de literatura.

    Sobre a genialidade da autora:
    A autora demonstra um domínio impressionante da arte de narrar. Ela consegue transformar uma cena trivial em uma experiência rica, carregada de imagens vívidas, emoções autênticas e personagens inesquecíveis. Sua escrita é ao mesmo tempo envolvente e elegante, alternando descrição, reflexão e ação de forma fluida.
    Ela prende o leitor pelo olhar sensível e pela maneira quase cinematográfica de construir a cena — conseguimos ver os personagens, ouvir suas falas, sentir a atmosfera da rodoviária. O ritmo da narrativa é impecável: começa com calma, se enriquece com detalhes sutis, cresce com o humor do diálogo e fecha com a consciência literária da narradora.

    Sem dúvida, é um texto que comprova a habilidade da autora em perceber poesia no cotidiano, em valorizar as pequenas histórias e em tocar o leitor com simplicidade e autenticidade – uma verdadeira arte que poucos dominam tão bem.

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