Eu vi na hora em que ela entrou no supermercado. Aparentava estar com certa pressa, como quem tem medo de não chegar a tempo, mas o estabelecimento funcionaria até as 18 horas. Talvez a pressa não fosse por isso, mas para providenciar o almoço. Eram 11 horas de um sábado agitado.
Quando passou por mim, não me notou. Em contrapartida, com uma visão fotográfica, observei alguns de seus traços. Aparentava ter mais do que possuía: uns 42 anos contra 35, e não faço ideia da margem de erro. Estava com considerável sobrepeso a ponto de suas roupas justas, muito justas, causarem em mim desconforto. O aperto era culpa dela e a ela cabia toda a responsabilidade.
Montada em uma bicicleta estilo Caloi ou Ceci, bastante descuidada, parou o veículo num pulo estranho em que seus seios vastos e caídos quicaram como bolas de tênis. Fiquei sem saber se era pressa ou falta de freio. Na verdade, sempre tenho essa dúvida sobre quem pedala esse tipo de bicicleta, assim como aquela Monark Barra Forte.
Ela prendeu a bicicleta de qualquer jeito com uma corrente mediana no corredor de ferro que delimita o espaço entre a calçada e as vagas para carros. Era tudo feito com pressa, brutalidade e desleixo.
Entrou no supermercado sem olhar para trás. Para quê? Se a bicicleta caísse, faria barulho e, dependendo da forma como ficasse, ela não voltaria atrás, pois não pretendia demorar nas compras; ainda mais que entrou analisando as filas nos caixas e estimando em qual entraria para sair mais rápido.
Também estou numa fila, mas é a da lotérica que fica ao lado, cuja parede é de vidro. Os olhares inevitáveis são trocados com facilidade e tédio. De onde estou há muita gente de todo tipo, formato e tamanhos. É incrível como a fila dos idosos, a maioria apostadores, é um pouco mais da metade da minha.
Mas meu interesse permanece naquela mulher. De onde estou, consigo vê-la transitando entre as fileiras; até porque o supermercado é pequeno. Aposto que começou como uma mercearia e por isso não deu tempo de crescer para ocupar um espaço maior. E pelo jeito deve demorar; falta algum tipo de ambição que permita alguma previsão.
Naquele ambiente havia necessidades, cada qual com as suas, e aquela mulher andava de um lado ao outro entre as prateleiras, quase esbarrando em algum amontoado de produtos em promoção. Será que não encontrava o que queria? Ou pior: chegou tão convicta que acabou se deixando seduzir pela variedade de produtos em formas, cores e preços?
Retomo o olhar para a fila em que me encontro. Nada mudou. Parou com a intenção de ficar. Peguei o celular para verificar as horas: eram 11:20. Eu que me apressasse se fosse o caso; acelerar era desistir. Fiz isso. Com dez minutos compassados chegaria a tempo de encontrar o chaveiro. Não era recomendável chegar às 11:50 e imperdoável às 11:55; pois o mau humor de quem ali estava desde às 7 horas não disponibilizava troco. Meio-dia para ele era mais do que encerrar o expediente naquele sábado; era um compromisso sagrado sair rápido para pegar seu carro, partir estrada e se refugiar na praia até domingo à noite. Compreensível.
Cheguei às 11:30 e tive que esperá-lo, já que tinha saído para fazer não sei o quê ou atender quem sabe-se lá onde. Independente do quanto demorasse, não poderia recebê-lo com cara feia; isso seria um risco de receber a nova chave lapidada torta e dentada. Prefiro evitar.
A casinha do chaveiro — que mais parece aquelas barraquinhas de festa junina — fica numa calçada perto de pequenas lojas de comércio variado. Por isso há sempre um vai e vem de pessoas e veículos encostados. Pelo horário o fluxo tornara-se menor; um carro estava estacionado e havia espaço para mais dois pequenos (hatches) à frente.
Nem pude me distrair; pois o homem vindo sabe-se lá de onde estacionou sua moto em frente ao carro. Ágil na baliza, ágil na descida e retirada do capacete e ainda mais ágil para pegar a chave da minha mão e realizar seu serviço. Alegre, esbaforido e falante, demonstrava animação pois se aproximava da hora final do expediente.
Só parou de falar quando ligou a máquina cujo barulho parecia uma lixa ou uma solda ou um misto desastroso de ambos. Quando tudo parecia cair na previsibilidade, vejo ao longe — isto é, não tão longe assim — alguém parando uma bicicleta abruptamente. Não sei se foi um problema de freio, um quase acidente ou uma trombada com alguém que preferiria chamar de atropelamento para amenizar qualquer dor (é menos feio também).
Não pude saber, mas o que vi e asseguro pela minha íris amarronzada é que aquela mulher ficou em pé, mantendo a bicicleta entre suas pernas. Estabanada que só ela, tentava ajeitar alguma coisa na garupa. Com brutalidade, encerrou a questão com um tapa. Esperava que não tivesse atingido alguma criança, mas, pensando bem, não tinha visto nenhuma. Provavelmente era a compra que fizera no supermercado. Ela vinha. Logo passaria por mim e aí teria certeza.
Lá vinha ela, pedalando com vontade—vontade de chegar em casa, arriscaria. Mantinha o contraste da aparência (42 contra 35), com a testa iluminada de suor. Mal passou por mim e ela teve o azar de ter que parar mais uma vez abruptamente a bicicleta. Houve um estouro. Tratava-se da queda de um latão de cerveja que, ao se espatifar no chão, respingou parte da bebida na porta do carro estacionado.
Ninguém percebeu, mas houve nesta cena um desvio de atenção. Enquanto um latão escandalizava com sua queda, outro latão rolava intacto para debaixo do carro. Aquela mulher desajeitada tentava evitar novas quedas e resolveu pegar a corrente para “prender a bicicleta”, travando o fardinho das bebidas como carga de caminhão pesado na BR, enquanto lamentava com um sorriso amarelo de quem quer se desculpar:
— Ah não, a cerveja está tão cara!
Como percebi que ela sentia falta de apenas um latão, achei conveniente não falar nada e nem esboçar uma reação que a levasse a se sentir pior. Seja por pressa ou acanhamento, ou mesmo medo de que o dono do carro aparecesse e provocasse confusão, partiu logo. E até onde pude ver, ela seguiu seu trajeto sem interrupção.
Minha distração foi interrompida com a queda da chave sobre o balcão que parecia de alumínio. Ao pegá-la para me entregar, o chaveiro ainda comentou:
— Hum, hum… A mulher perdeu o latão. Que desperdício!
Eu, sem ter certeza se ele considerava como desperdício a mulher ou a cerveja, soltei:
— E caiu outro latão debaixo do carro.
— Debaixo? Cadê? — Perguntou entusiasmado.
— Bem ali, ó, atrás do pneu da frente — apontei.
Peguei a chave e coloquei no bolso. Já do outro lado da rua, olhei novamente para a direção da banca do chaveiro. O homem desligara os aparelhos e guardava o que precisava. Assim que fechou a janela, retirou o gancho que a mantinha aberta e se dirigiu até o carro estacionado.
Como imaginava, ele se abaixou e com aquela barra de ferro conseguiu puxar o latão para si. Enquanto caminhava de volta para sua banca, aproveitava para limpar o latão que logo guardou em sua bolsa, devidamente ajeitada na garupa da moto. Ligeiro, fechou a banca e saiu pilotando com rapidez e maestria. Eram 12:01.
A tua pressa te prejudica

Uma resposta para “A tua pressa te prejudica”
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O texto é uma verdadeira aula de maestria na construção de cenas cotidianas com uma dose de leveza e ironia, explorando a sutileza dos gestos e pensamentos dos personagens. A forma como o narrador observa cada pequeno detalhe, sem se impor ou interferir, traz uma naturalidade que envolve o leitor. O uso do “sorriso amarelo” na primeira linha é uma maneira genial de transmitir a complexidade de uma situação sem dizer uma palavra a mais do que o necessário. O momento de distração que se transforma em observação casual, a interação com o chaveiro, e o movimento ágil e preciso do homem ao recuperar o latão, tudo isso é descrito de forma fluida, criando uma sensação de dinamismo e espontaneidade. A escrita é quase cinematográfica, nos permitindo ver, ouvir e sentir a cena com clareza, enquanto revela, de forma sutil, o caráter dos personagens e a dinâmica entre eles. É um texto que exibe domínio absoluto da narrativa, sem pressa, sem exagero, apenas nos entregando a beleza da observação do cotidiano.
Amei o texto do começo ao fim.
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