A pequena e notável Ana Clara

Ana Clara é a minha vizinha mais fofa. É uma criança bem moreninha, tem lá seus três ou quatro anos; não sei acertar assim de olho. Embora todas as garotas nascidas aqui no prédio tenham sido batizadas com o mesmo nome, ela não é mais uma. É a fofa e carismática Ana Clara.

A pequena, dependendo do dia e do ângulo que a vejo, apresenta os traços da mãe, cuja tez leve denota notável distração. Já em outros momentos, quando sorri e olha com falsa humildade, é a “cara” do pai. Por enquanto, são belos os traços e permanecerão até a chegada da adolescência.

Ana Clara é uma pequena notável. Certa noite, ao passar perto da vaga deles na garagem do prédio, percebi uma folha de papel branca caída, do tipo A4. Com a curiosidade de menina, aproximei-me para ver. Antes, certifiquei-me de que não havia mais ninguém ao redor, pois seria cabuloso ser vista de cócoras ao lado de um carro que não é o meu olhando para algo no chão.

Naquela folha estava escrito “Certificado” e, após algumas palavras, lá estava o nome: “Ana Clara Getúlio Gonçalves”. Era o nome completo da pequena. A honraria lhe era conferida por ter enfrentado com coragem e bravura a temível prova da agulha. Reli com entonação reticente. Que prova da agulha é essa? Li de novo toda a folha. Olhei atentamente o verso, que nada tinha, e insisti em mais algumas releituras que não me deram nenhuma pista. Seria, por acaso, alguma vacina que ela tinha tomado? Mas não tinha um logo ou um carimbo do posto ou da secretaria de saúde…

E o pior era estar ali jogado ao chão sujo, lançado pelo vento de um lado ao outro, marginalizando qualquer importância. Uma bela memória era renegada. Se a pequena fosse minha filha, guardaria aquele certificado como quem guarda um diploma; afinal, é o símbolo de uma conquista: Ana Clara, a corajosa.

Com o passar dos dias, esqueci o certificado renegado, pois todas as vezes que a via observava seus movimentos. Às vezes dava uns gritinhos; outras vezes acelerava os passos. Não corria; como numa marcha atlética, ela seguia firme e reta em direção ao carro do pai ou aos gatos que transitam pela garagem. Com estes últimos eram desastrosos, já que eles correm em disparada assustados quando a veem se aproximar com os bracinhos abertos; mas ela insiste. Ana Clara é persistente.

Semana passada encontrei-me com ela e a mãe. A pequena estava com um vestido simples de bolinhas e os cabelinhos crespos presos à la chiquinha. Quando me viu esboçou o sorriso dos erês: leve e puro. Gosto de vê-la. É bom encontrá-la. E dessa vez quase lhe chamei de “Corajosa”. A mãe poderia não entender e por não entender deixar passar ou ainda por não me entender perguntar o porquê do uso do adjetivo. Por precaução, achei por bem chamá-la de “dona mocinha”. A sonoridade é boa.

Assim que me ouviu, a pequena se aplumou, ofereceu-me um sorriso sapeca e começou a caminhar pelo corredor. Às vezes colocava um dos bracinhos gordinhos na cintura; ora segurava a ponta do vestidinho. Em todas olhava o chão e a mim com um sorriso que anunciava algum gracejo a qualquer instante, mesmo que não saísse. Ainda assim aguardávamos: a mãe passiva e eu maravilhada com as proezas miúdas da infância.

Chamei-a novamente de “dona mocinha” por mais algumas vezes e ela — a pequena — quando ouvia empinava cada vez mais. A mãe concordava com um sorriso pasmo que sua filha gostava de ser chamada assim. E a pequena demonstrava que se divertia com tudo aquilo; sua mãe e eu éramos meras figurantes.

Ana Clara — pequena e exata — mantinha a postura e vez ou outra balançava a cabeça; parecia que dançaria à nossa frente. Mas não; era tudo o que compreendia e internalizava naquele momento. Mesmo que no futuro não lembrasse; mesmo que sua mãe recordasse os detalhes desse dia; apenas externalizaria de forma sutil e inconsciente algum traço que não ligasse a nada; faltaria certeza: mesmo que esse traço se fizesse presente no andar, no olhar ou no comportamento… ainda que desconfiada não saberia creditar à possibilidade: “Eu lembro desse dia…”, “eu não lembro desse dia…” e só.

Mas ali na construção de sua memória ela passava a mãozinha sobre as chiquinhas do cabelo, olhava para o vestidinho e para o ambiente. Ela — a pequena — que se portava solene em nada lembrava a mesma garotinha que correu pela manhã na garagem com as chaves do carro na mão para entregar ao pai; decerto dadas pela mãe. Por agora na noite fresca ela seguia firme e macia frente à genitora rumo ao seu apartamento. Com a empáfia do pai e a distração da mãe, Ana Clara — munida da imponência de uma modelo de passarela e da leveza de uma bailarina clássica — justificava o título que eu atrevida lhe outorgara: o de mocinha.

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