Música para construção

A música desafinou e o mercado fonográfico semitonou… Se isso tivesse começado exatamente agora teria que ser mais compreensiva, pois afinal de contas todo começo é difícil. Mas temos décadas de entretenimento, séculos de cultura e alguns outros bons pares de contagem de tempo para se homenagear a arte. Ah, essas elucubrações…

Tive um dia ameno que se cumpriu na promessa do inverno que, segundo as línguas cortantes, “nem começou”, mas confesso que alimento certa expectativa – palavra esta que me deixa agudamente feliz e me protege de qualquer rastro de ansiedade.

Todos os dias tenho as companhias fieis do papel e do meu simpático cachorro – símbolo de toda espécie de lealdade. E, não por menos, meus pensamentos que insistem fluir pelo meu corpo como riacho. Às vezes me banho e em outros prefiro somente contemplar.

Mas hoje fiquei em dúvida, pois havia sons por toda a parte, que por mais que viessem de uma única janela retumbavam por todo o ambiente do apartamento. Vinha de fora sim e bem na diagonal onde reside uma construção de uma bela casa. Lá todos os dias são iguais, pois se estabeleceu uma rotina contrária às novidades (a obra não anda!) que pode ser contada pela trilha sonora que ameniza o “baticum” de martelos, queda de objetos, assovios, gritos e palmas de pedreiros.

Hoje o playlist era “Nostalgia music”. De início, um Charlie Brown Jr com Negra Li; seguido de Gabriel, o Pensador que fez uma sólida ponte com o visceral Freddie Mercury, que logo emendou um Cazuza. Nem precisou chegar ao refrão de “Exagerado” para sentir, em meio a toda aquela desafinação, que aqueles homens lembraram sua infância e adolescência com sentida saudade. Será que a saudade pungente era da vida vivida ou o que aquela música tocava a alma?

Quando pensei em arriscar um palpite talvez em lá maior, a música acabou. E como é possível imaginar, logo veio outra, cuja introdução marcante de “Índios” da Legião Urbana se fez ouvir assim como o grito (ou suspiro alto) de um “grande Renato Russo”…

Não sei quem é aquele pedreiro como não cogito adivinhar quantas construções já tenha erguido na sua vida para sabe-se lá quantas outras vidas habitarem, mas éramos sóbrios e compreensivos naquela introdução. Ansiávamos a nota, a primeira e/ou tom da canção que insistia suavizar com um “Quem me dera…” inicial, que sempre, oh como sempre tem muito a nos dizer.

A música estava alta, o homem ensimesmado com o seu martelo, prego e parede. A versão da canção era a original e percebi que o homem também se pôs original. E eu? Aqui da janela diagonal seria a sua cópia?

Ah, mas logo veio um “Quem me dera” com um “provar que quem tem mais do que precisa ter” e percebi que cantamos direitinho o mesmo trecho. Será que tínhamos o bastante para nos bastar, ou bastava somente acreditar que não era nada disso e tudo, como uma fase, simplesmente passava para se desvanecer naturalmente como o silêncio?

Sei somente que o trato com o prego tornou-se mais suave. É claro que o homem pensava, sentia, lembrava, amargava e ainda assim insistia. De vez em quando algum outro pedreiro passava por ele para pegar ou largar alguma coisa. Talvez fosse qualquer coisa. Coisa qualquer.

Talvez fizessem aquele caminho para lembrar o que deveriam fazer como também esquecer o que já deveria há muito cavar e enterrar de vez. Ninguém se olhava. Eram todos ensimesmados.

Índios como as outras canções anteriores anunciava que iria acabar, pois que suas últimas notas harmoniosamente se aproximavam. Índios findaria novamente como tantas outras vezes fizera e continuaríamos (in)prestavelmente tentando entender “como um só deus ao mesmo tempo é três”; mas era tarefa tamanha, já que ainda era difícil ver “que o simples era o mais importante”. Renato sabia que nos deram espelhos, mas nas obras eles não existiam, pois que só havia esqueletos/ tijolos, e para todo o resto, como em qualquer parte ou lugar paredes.

O pedreiro esperava a última nota para almoçar e se ensimesmar de outra forma. Eu, talvez ainda sua cópia estivesse prestes a me ensimesmar… Uma tábua caiu do segundo andar e fez um ensurdecedor barulho que inevitavelmente notei do meu olhar diagonal à janela. Mais uma vez a música acabou e melodiosamente cumpriu a sua tarefa. Tudo se aquietou. Nada esvanecia melhor do que a poeira.

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