Fantasmas de si mesmos

Fim de tarde. Um casal caminha por uma calçada no centro da cidade. Distraídos entre si, porém atentos as vitrines. Se procuram algo para comprar é impreciso, pois seus olhares deslizam de um canto para o outro, para cima e para baixo, e nada parece alegrá-los. Como todo casal de hoje, um aparenta fadigado, enquanto o outro sempre procura algo (que nunca encontra). Quando se aproximam é para falarem algo baixinho. Fora isso, se afastam. Perigo maior é se resolverem continuar a caminhada e um começar a andar mais rápido deixando o outro para trás. Por quê? Isso é uma má sinalização de que não transam mais. E a perda de atratividade e desejo pelo parceiro é sintoma grave de fim de relação.

E aposto que eles não percebem que se encontram neste patamar perigoso. Infelizmente eu sei. E para piorar, o fadigado começa a mexer no celular. Silêncio. Enquanto isso, aquela que procura, ou para simplificar, a “procuradora” continua a ziguezaguear os seus olhos pela vitrine e seus produtos e começa a resmungar qualquer coisa estranha. Presumo eu que ficou impaciente com o reflexo da vidraça. Não demora muito, o “fadigado” começa a murmurar. Ela pergunta se ele encontrou alguma promoção na internet melhor e ele, fiel a sua distração, pergunta “que preço, de quê?”. Ela o responde aspirando surpresa e cansaço que “achei que estava vendo aí se tinha alguma promoção…”. Mas ele não. Sem olhar para ela, pois seus olhos não conseguem se desviar do celular, diz que “estava olhando o grupo do WhatsApp, o do trabalho”.

Observo-os com serenidade. Ela é inquieta, presumo que sofra de ansiedade. Ele, por outro lado, é apático. A cada dois passos que ela dá, ele segue com um. Sempre curvado à tela. Lembra uma criança atrás da mãe, que a segue porque tem que seguir. A diferença é que ele é fadigado.

Vestem-se com desleixo. Há muito não se arrumam, nem um para o outro, menos ainda para si mesmos. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer da aparência. Ele adotou uma barba que deveria lhe dar maior seriedade e masculinidade, mas não. Os pêlos desgrenhados lhe conferem mais cansaço e envelhecimento. E ela? Ah… Adotou um platinado nos cabelos que, ao mesmo tempo, a envelhece e lhe apaga. Isso sem contar a sobrancelha, a qual enriquecida com henna e lápis revela à sua versão em caricatura.

Entretenimento a parte, a cena retoma o roteiro. Continuam a se perderem frente a vitrine. De vez em quando se encontram pelo reflexo da vidraça. Demoram alguns segundos em suas próprias imagens. Ela conserta algum fio de cabelo com cuidado, menos se estiver com “frizz”. Ele alisa a barba “pompom” inclinando a cabeça de um lado para o outro. Mas não há acerto em meio a tantos fios desgrenhados. Impossível.

Não demora muito e surge um homem de meia idade, pedinte, e com olhar de cachorro magro. Ele quer um “dinheirinho”. Eles não dão. Pede moeda, qualquer uma. Nada feito. Estamos em tempos de PIX. E quem ainda utiliza cédulas, qualquer uma, inclusive as moedas, prefere guardá-las para pagar o estacionamento. Difícil.

Logo passa um carro de som com uma música estridente, que aumenta a sensação térmica para insuportáveis ondas de calor. Mas a mulher “Procuradora” não sente, apenas acompanha a canção e automaticamente canta e dança “Palhaça eu… A emocionada…”. É impressionante o quanto a música lhe faz sentido, a ela e a centenas de tantas outras, que sabem todos os versos e cantam com força para expressarem todas as suas mazelas… Mas se você disser a qualquer uma que há “erros de produção ou mesmo de gravação”, elas dirão que “pouco importa, pois o que importa é que faz sucesso”. Não observam que suas feridas são tocadas e expostas, e não lhe é oferecido nenhum remédio… Não mesmo, pois nem com o esbarrão cometido por uma mulher desajeitada, que só olhava a tela do celular, não interrompeu a sua cantoria. Ela continuou os versos e cantou baixinho o refrão “Palhaça eu… A emocionada”.

E ele? Mantinha-se apático. Se hoje não fosse tão comum, provavelmente chamaria a atenção. É um homem do seu tempo. O tempo da apatia e da submissão imperativa semelhante a da mulher traída que “tudo aceita porque as coisas são assim e não há como mudar”. E mesmo que se insistisse para mudar ele perguntaria “o que mudar, por onde começar”. Nada sabe, não percebe o quanto a sua apatia aliada a fadiga o consome por completo. Por sorte não foi assaltado. Não viu que um homem tinha passado por ele, de bicicleta, três vezes com o intuito de roubar o celular. De alguma forma, o meliante percebeu que o aparelho não valia o esforço a ser empregado. Desistiu.

E ela? Também desistiu dos seus próprios sonhos. Conformou-se em ser mais uma entre milhões de outras almas moribundas que acreditam estarem encarnadas, vivas pelo simples fato de respirarem. É o inconsciente coletivo pós-pandemia.

Presa em si mesma, afetada pela ansiedade, não percebe que uma mulher desconhecida passa por ela e a mira “com olhar ruim”. Aquele olhar que, na cultura popular, preservada nos rincões brasileiros é mais conhecido como “olho gordo”, um tipo de olhar maléfico, que transmite ao outro uma energia negativa prejudicial que poderá afetá-lo em diversos campos da vida. A afetação… Penso eu. Um assalto frustrado, um olhar malévolo lançado que ignoraram… A ignorância da presença constante do mal em sua forma simples… Que será que os afeta? O que eles podem temer? Tudo neles é fantasmagórico. Ora, pois, são fantasmas de si mesmos.

Estão ambos intimamente inquietos, como um cão posso farejá-los. Alguém poderia dizer que é culpa do calor ou ainda a aproximação da noite, a qual revela todo o cansaço acumulado ao dia. Mas não. É uma inquietação que habita em seus corações. É palpitante.

A noite vem. O movimento do trânsito se intensifica e as pessoas se dispersam. Ela o chama para irem embora e sai com passos precisos. Ele guarda o celular no bolso da bermuda e caminha devagar acariciando a barba. Ela segue com passos largos. A distância entre ambos aumenta. Ele ficou para trás.

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