O idoso e a bicicleta

Desejar paz não significa encontrá-la, o que pode contrariar a lei da atração. Cabe ao sossego te escolher, é ele quem te encontra. Estou quase convencida disso. Digo “quase” porque tive um dia normal, mas a noite — companheira do descanso — desandou. Só queria tomar um café, e quando ficou pronto mal tive o prazer de saboreá-lo. Meu paladar foi interrompido por uma mensagem no celular. Uma vizinha precisava de ajuda. O filho havia se acidentado (não se sabe como) na rua (não se sabe qual) e precisava encontrá-lo. Talvez levá-lo ao hospital. E assim se sucedeu. No caminho dirigi com o temor de que fosse preciso esperá-los. Por sorte, não precisou. Voltei tão aliviada que resolvi apreciar o trajeto com calma.

Quando regressei ao prédio, calculei que teria tempo suficiente para alimentar os gatos na rua, subir, tomar um banho, assistir a Superliga de Vôlei feminino e depois descansar. Era simples. Mas aí veio o “quase”.

Quando os gatos estavam prestes a terminar, eis que surgiu um idoso em uma bicicleta idosa. Aproximou-se de mim, freou e começou a falar. No seu monólogo dizia-se trabalhador, tinha 73 anos, vivia sozinho devido ao abandono da mulher e havia feito a capina de um terreno para uma moradora da rua. Cobrou “cem contos” e queria receber, mas não encontrava a mulher. Tentou várias vezes, e todas foram em vão.

Era um idoso bem-disposto, principalmente na fala, pois mal respirava entre uma palavra e outra, o que me causou gastura, ao ser difícil acompanhar a velocidade em uma leitura labial. Logo disse ser sozinho, o que fazia sentido de toda aquela falação. Que serviu ao Exército, não conhece remédio, nem médico e que no quartel tomou alguma coisa que não o deixava adoecer, e por isso não tomou vacina… Que tinha 73 anos e queria saber a minha opinião se ele aparentava essa idade. Monossilábica, por situação e pressa, disse que “não”.

Logo emendou que fizera a capina para a mulher, que acorda cedo, tem uma moto e uma casa, além da bicicleta fabricada há 40 anos e que deseja arrumar uma companheira, mas as candidatas são difíceis. Uma tem três filhos, outra cinco e outra quase caiu no colo dele. Mas não era de amores, era de embriaguez.

E voltou aos “100 contos de réis”… Que cobra barato, os outros pedem 200, mas ele mantém o preço desde 2016 (ou será 2017? Tanto faz), que dorme pouco, cria pato e mais um monte de bicho. Quando chega a noite sente-se só. Ligar a TV, não tem nada que presta; o rádio, não tem nada que presta. E que o jeito é se sentar frente a rua. E quando conversa com as viúvas, são unânimes: ele está com razão. É triste estar só. É perigoso ficar sozinho. Vai que passa mal? É triste a solidão.

Pensei no jogo que já devia ter começado. Quanto será que estava o primeiro set? Com todo aquele falatório esqueci até que havia um relógio no meu pulso, como esqueci de observar se os gatos terminaram de comer a ração. Queria encerrar o “diálogo de um só”, queria que ele fosse embora, mas não surgia uma abertura, não surgia oportunidade nenhuma.

Ele tem 73 anos, lembrou novamente. E arriscou que eu tinha 40. Deu tempo de só dizer “menos, bem menos”. Ele tentou “35”, tudo bem. Não era a hora de negociar ou barganhar dígitos. Minha otite se fazia presente, minha cabeça doía. Nisso, a gata passou se esfregando na minha perna. Comecei a sentir fome. E ele, o septuagenário “não acho a dona, acho que vou desistir dos 100 contos”. Há muito desisti. Foi na freada da bicicleta coroa. 40 anos só de fabricada.

E ele tem 73. Disposto. “Eu ganho de muitos jovens aí”, foi ele quem disse. A dona, morava na última casa da rua. Quis ensaiar uma prece, uma súplica a quem pudesse me ouvir para me tirar dali ou fazer com que o homem e seus 73 anos fosse embora, mas era inviável concentrar. Quando disse novamente — sabe-se lá quantas vezes havia repetido que tinha 73 anos — aguardei um sinal celestial, o atendimento prioritário a minha súplica. Não. Era apenas a retomada de todo o monólogo. Enfadonho.

Dois dos três gatos já tinham desistido por mim. Aproveitaram os espaços escuros para saírem silenciosos, ao modo felino. E eu estava no claro, perto do portão, o qual parecia distante…

Já não sabia em que parte estava o monólogo, pois a otite havia intensificado. O cansaço intensificava. Quando estava prestes a encerrar da forma que desse surgiu a tal vizinha, a moradora da última casa da rua.

Oportunidade oferecida é oportunidade recebida (e com alegria). Assim que começaram a conversar distraidamente sai devagar. Só a gata me viu. Lambendo a pata estava, lambendo a pata continuava.

De fato, quando adentrei a sala e liguei a TV, o jogo estava sendo transmitido. Aproximava-se do final do primeiro set. Ponto a ponto, meu time cravava as bolas avassaladoramente. Ganhou o primeiro set. Aproveitei para ir à janela e discretamente observar se a moradora e o idoso estavam lá. Sim. Estavam lá. Permaneciam a moradora, o idoso de 73 anos e a bicicleta coroa.

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