Ele caminha. É pesado e fluido ao mesmo tempo. Como consegue? Isso é inexplicável. De algum modo particular mantém o ritmo. Darei o nome de Senhor F. Lembra fluido sim e ainda preservo a sua identidade. Mais do que saber quem ele é, é interessante observá-lo como conduz a sua existência: com lentidão. Lentidão de lerdeza mesmo!
Sempre sai e entra com o seu carro da garagem do prédio, em que reside, devagar. Sempre e devagar… Certa vez, não se sabe como resolveu sair com pressa. Logo bateu a lateral na pilastra do portão, o qual deixou marcas em alto relevo na lataria, fora uma parte da tinta que rascunhou o desenho de um emoji cansado. Pareidolia.
É fato que o Senhor F é um homem cansado. Quando caminha projeta todo o seu corpo para frente e abaixo. Estás corcunda. Nunca sorri. A impressão que se tem é que é uma forma de preservar a respiração. Não é fácil vencer o cansaço nos dias atuais.
O estranho e fluido Senhor F jamais entra em embates, prefere agir nos bastidores, pelas costas… Tudo para “não se indispor”. Bem se sabe que o medo que nutre da exposição é de que todas as suas fraquezas e imagem social sejam aniquiladas. No fundo ele sabe que constrói um castelo de areia.
Apreciador da ditadura militar. Orgulhosamente diz que tem como exemplo desta época o seu pai que, naquele contexto histórico, integrava o grupo que ouvia e acatava imediatamente o dito “Cala a boca e obedeça”. Simples, rápido, prático e eficaz. Ah, o Senhor F não vivenciou este período sombrio, como não estudou e nunca ouviu falar de movimentos como o Integralismo… Sobre Fascismo, nem sabe escrever corretamente. Nada surpreendente para quem insiste em digitar “mais” no lugar de “mas”.
Aliás Senhor F entrou com muito custo em uma duvidosa faculdade particular para estudar Direito. Ele quer “ser doutor”. É bonito, chique e grandioso. Certa vez, em uma aula, um professor falou “gregário”. A palavra o impactou. Deve ter sido tão forte que se esqueceu de conferir o significado. Pouco tempo depois foi prestar um concurso e, na prova de redação, cheio de si lembrou de “gregário”. Senhor F, orgulhoso e motivado mencionou que Aristóteles escreveu em seus “Discursos Gregorianos”… Tsc, tsc… Erro comemorado pela concorrência…
A culpa não é toda do Senhor F, ele acreditava que ao encher as linhas com palavras bonitas – e se possível maiores para alcançar rápido o mínimo exigido pelo concurso – o que popularmente é conhecido por “encher linguiça” lhe garantiria algum mérito. Pobre Senhor F… Mal imagina que um leitor reconhece facilmente essa prática, o que dizer então de uma banca responsável pela correção da prova?
Quase me esqueço de contar, Senhor F é pai, e de dois garotos. Assim que o mais velho começou a crescer, botou na cabeça do menino que ele teria que gostar de futebol, jogar e fanatizar. O menino que gostava tanto de baleias passava agora a só falar de Cristiano Ronaldo, Flamengo… E teve um dia que eu vi o pai “tentando” ensinar o filho a jogar futebol, inclusive a driblar. Senhor F parecia uma múmia toda enfaixada, dura e sem ritmo… Gozado que todo gingado estava com a mãe, a qual em uma tarde fez o menino suar de tanto olé que levou. Era drible para a esquerda, depois para a direita, caneta, por cima…
Uma vez, Senhor F decidiu comprar um terreno no que viria a ser um residencial, porém o local é dentro de uma reserva florestal. E isso não é permitido. E o que se sucedeu? Senhor F perdeu o dinheiro investido e mais algum sonho na vontade irresistível de respirar ar puro… Há de se contentar e respirar ar condicionado: no quarto, no carro… E, nos fins de semana, na praia, após enfrentar uns 50 quilômetros. Diz ele que vai porque gosta, mas não. É porque as pessoas a sua volta vão, e se ele não for e lhe perguntarem na segunda irá temer que sua resposta seja insuficiente e pensem que sua ausência foi causada “por falta de dinheiro”. A imagem social é primordial.
Não sei se foi por obra do fracasso do negócio, mas ele logo depois quis ser músico. Adquiriu violão, guitarra… Só não adquiriu a desenvoltura que os instrumentos exigem. Em uma tediosa conversa que tivemos sobre o atual cenário musical soltei um “faz três acordes e já acha que é músico”. Ele ouviu e recebeu a frase com espanto, retraiu a cabeça para trás e emudeceu. E por muito tempo os instrumentos também. Há um tempo começou a “tentar” o baixo. Sem sucesso. Se não tinha o gingado do futebol como poderia groovar?
Senhor F não gosta de palavrões, isso é feio. Prefere conspirar contra aqueles que, de alguma forma, o faz se sentir ameaçado ou que representam tudo o que gostaria de ser (e ter); mas tudo sempre, lembro mais uma vez, “sem se indispor”. Faz coro e par aqueles que postam #GloboLixo, mas é assinante do canal Combate, que pertence justamente ao Canal Globo. Quando o seu primogênito tinha lá seus cinco anos deu de presente ao garoto o boneco do Capitão América. Um dia, o menino veio me mostrar e lhe contei que o tal boneco era uma representação de todo heroísmo e cultura nacionalista dos Estados Unidos. Difícil mensurar quem ficou mais pasmo: o garoto, a mãe (aquela boa de bola) ou o Senhor F. E, por falar em nacionalismo, Senhor F sofreu com duas derrotas: as eleições presidenciais e a Copa do Mundo de Futebol masculino. Em ambas carregou presa na traseira do carro a bandeira do Brasil.
Nas eleições, ostentava orgulhoso sua preferência por Bolsonaro, mas como o mesmo foi derrotado, Senhor F ficou abatido, pensativo e passou a caminhar com uma nova fluidez que contemplava o chão. Presumo que seu abatimento tenha ficado aquém somente do próprio ex-presidente, o qual desconhece a existência de seu famigerado eleitor. Azar na política, esperança no futebol. E eis que a seleção brasileira foi eliminada em plena quartas de final. Não restava outra escolha a não ser torcer pela França (assistindo tudo pelo Premiere, mais uma da família Globo). E, como se sabe, eles perderam para a Argentina, a qual torci como uma buena hermana.
Coitado do Senhor F… Tanto patriotismo para nada. Ah, se pudesse ele se mudaria para os Estados Unidos. Teria que levar a família, mesmo que não quisesse. É um fardo! Ao menos aqui, no Brasil, pode deixar todo mundo em casa e esticar as horas na rua para respirar e, assim que se refizer, retornar quando todos estiverem dormindo. Paz masculina.
No dia seguinte, acordará cedo para sair cedo com o intuito de trabalhar. Ontem mesmo fez isso. Até ligou o rádio do carro e colocou uma música gospel para se aproximar de Deus. Não deve ter tido sucesso, pois aumentou o volume. Saiu devagar para não bater. Conseguiu. E seguiu cansado com o seu ar-condicionado ligado.
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